Marx: as formas da política
Jaldes
Meneses
O galope dos acontecimentos é
condensado no intervalo entre a revolução de 1848 - quando o povo de Paris
derruba, em barricadas nas ruas, o reinado burguês de Luis Felipe, de origem na
aristocrática dinastia de Orleans e que se transforma, no exercício do poder de
Estado, em um títere da fração financista da burguesia -, até o golpe de Estado
de 1851, perpetrado por um aventureiro de pouca intimidade com a Nação, que
falava francês com sotaque suíço, de nome Luís Bonaparte, sem escrúpulos, mas
cujo dote imaginário para as massas consistia em ser sobrinho do velho
Napoleão. O aventureiro atendia pelo nome de Luís Bonaparte e viria a se chamar
Napoleão III, o monarca bastardo do II Império, que modernizou e urbanizou o
país a golpes de autoridade, e caiu em 1871 aos pés de Bismarck, na maior
derrota militar da história da França. Modernidade de ferro e sangue.
Como uma revolução que despertou
entusiasmo ao ponto de ser saudada como “a primavera dos povos” resultou, em
menos de três anos, em um desfecho inesperado? Marx busca explicar o processo
em termos de luta de classes, uma chave heurística de interpretação histórica
que não foi criada pelo “mouro”, mas pelos próprios historiadores burgueses,
com vistas a explicar o término da sociedade de ordens fechadas do feudalismo -
o clero, a aristocracia e o povo -, sintetizado no chamamento de “todo poder ao
terceiro Estado”, desígnio lançado por uma cartilha do abade Sieyès realizado
pelos Sans-culottes.
Vale observar que o tratamento
que Marx dá às classes em “O 18 de Brumário…” não se resume a detectá-las na
estrutura econômica, como se fossem objetos inertes. Isso explica apenas a
primeira determinação do fenômeno das classes. As classes de “O 18 de Brumário”
são vivas, ou seja, erguem-se das estruturas, subdividem em frações, partidos
de frações, aparatos do Estado (burocracia e forças armadas), e, por fim,
reconhecem o papel do indivíduo na história. Esse somatório complexo resulta na
luta de classes, não apenas um conflito econômico no âmbito da produção, mas uma
relação de forças que traspassa a sociedade de alto a abaixo, da fábrica ao
Estado.
A explicação. Quem estudou a história
do “longo processo” da revolução francesa, que vai de 1789 (Tomada da Bastilha)
a 1871 (derrota na guerra Franco-Prussiana) e a Comuna de Paris, sabe da
impressionante quantidade de formas políticas adotadas; a França foi Monarquia
Constitucional de 1989 a 1792; Ditadura Republicana Jacobina de 1792 a 1794;
Republica Parlamentar do Diretório Thermidoriano de 1794 a 1799; Republica do
Consulado Napoleônico de 1799 a 1804; Império Napoleônico de 1804 a 1814;
Restauração do Antigo Regime de 1815 a 1830; Monarquia Burguesa de 1830 a 1848;
Segunda República de 1848 a 1852; Segundo Império de 1852 a 1971.
Mas a arquitetura interna dos
escritos historiográficos de Marx é mais ambiciosa que a simples constatação
das mudanças políticas. Ao privilegiar a categoria da luta de classes, o autor,
ainda que de modo subterrâneo, na verdade, está polemizando que as correntes
constitucionalistas do direito, dominantes na época e até hoje, que interpretam
as formas da política como uma sequência insossa de regimes normativos de leis.
Assim procedendo, essas correntes perde de vista a explicação da passagem de
uma forma a outra. Em Marx, a chave da explicação reside precisamente no
compasso da luta de classes.
Leitor apaixonado de
Shakespeare, este compasso da luta de classes, em Marx, afigura-se à dinâmica
de uma tragédia cujo movimento das máscaras - os papéis de classe encarnados
nos partidos e indivíduos - vai dando a tônica a ação (o teatro shakespeariano
é especialmente ação) dos dramatis
personae.
O antropólogo estruturalista
Claude Lévi-Strauss, um intelectual de apurado senso de observação, costumava
dizer que quando lhe faltava a inspiração de escrever, ele punha-se a ler “O 18 de
Brumário de Luís Bonaparte”, a obra-prima política e literária de Karl Marx.
Trata-se, sem dúvida, de uma obra excepcional, um clássico insuperável de teoria política
de extraordinária força imaginativa. No texto, Marx descreve, em pena nervosa
no galope dos acontecimentos, o processo político na França em uma época aguda
de crise política.
Há uma questão decisiva na
arquitetura interna de todo "O 18 de Brumário” que tem passado
despercebido por certos comentaristas. Exponho o axioma e em seguida explico.
O axioma. Em Marx, as formas de
poder de Estado (inclusive as formas jurídicas) se alteram no compasso das
determinações instáveis da correlação de forças da luta de classe.
Pode-se afirmar que em pouco
menos de um século a história da França concentrou praticamente todas as formas
políticas características da ordem burguesa do futuro. Esta a principal razão
de o estudo dessa fase histórica, menos para recitar feito papagaio e mais para
compreender, ser fundamental a quem se interessa por teoria política e análise
de conjuntura.
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