Marx: as formas da política

Jaldes Meneses

O antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss, um intelectual de apurado senso de observação, costumava dizer que quando lhe faltava a inspiração de escrever, ele punha-se a ler “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, a obra-prima política e literária de Karl Marx. Trata-se, sem dúvida, de uma obra excepcional, um clássico insuperável de teoria política de extraordinária força imaginativa. No texto, Marx descreve, em pena nervosa no galope dos acontecimentos, o processo político na França em uma época aguda de crise política.

 O galope dos acontecimentos é condensado no intervalo entre a revolução de 1848 - quando o povo de Paris derruba, em barricadas nas ruas, o reinado burguês de Luis Felipe, de origem na aristocrática dinastia de Orleans e que se transforma, no exercício do poder de Estado, em um títere da fração financista da burguesia -, até o golpe de Estado de 1851, perpetrado por um aventureiro de pouca intimidade com a Nação, que falava francês com sotaque suíço, de nome Luís Bonaparte, sem escrúpulos, mas cujo dote imaginário para as massas consistia em ser sobrinho do velho Napoleão. O aventureiro atendia pelo nome de Luís Bonaparte e viria a se chamar Napoleão III, o monarca bastardo do II Império, que modernizou e urbanizou o país a golpes de autoridade, e caiu em 1871 aos pés de Bismarck, na maior derrota militar da história da França. Modernidade de ferro e sangue.  

 Como uma revolução que despertou entusiasmo ao ponto de ser saudada como “a primavera dos povos” resultou, em menos de três anos, em um desfecho inesperado? Marx busca explicar o processo em termos de luta de classes, uma chave heurística de interpretação histórica que não foi criada pelo “mouro”, mas pelos próprios historiadores burgueses, com vistas a explicar o término da sociedade de ordens fechadas do feudalismo - o clero, a aristocracia e o povo -, sintetizado no chamamento de “todo poder ao terceiro Estado”, desígnio lançado por uma cartilha do abade Sieyès realizado pelos Sans-culottes.

 Vale observar que o tratamento que Marx dá às classes em “O 18 de Brumário…” não se resume a detectá-las na estrutura econômica, como se fossem objetos inertes. Isso explica apenas a primeira determinação do fenômeno das classes. As classes de “O 18 de Brumário” são vivas, ou seja, erguem-se das estruturas, subdividem em frações, partidos de frações, aparatos do Estado (burocracia e forças armadas), e, por fim, reconhecem o papel do indivíduo na história. Esse somatório complexo resulta na luta de classes, não apenas um conflito econômico no âmbito da produção, mas uma relação de forças que traspassa a sociedade de alto a abaixo, da fábrica ao Estado.

Há uma questão decisiva na arquitetura interna de todo "O 18 de Brumário” que tem passado despercebido por certos comentaristas. Exponho o axioma e em seguida explico.

O axioma. Em Marx, as formas de poder de Estado (inclusive as formas jurídicas) se alteram no compasso das determinações instáveis da correlação de forças da luta de classe.

 A explicação. Quem estudou a história do “longo processo” da revolução francesa, que vai de 1789 (Tomada da Bastilha) a 1871 (derrota na guerra Franco-Prussiana) e a Comuna de Paris, sabe da impressionante quantidade de formas políticas adotadas; a França foi Monarquia Constitucional de 1989 a 1792; Ditadura Republicana Jacobina de 1792 a 1794; Republica Parlamentar do Diretório Thermidoriano de 1794 a 1799; Republica do Consulado Napoleônico de 1799 a 1804; Império Napoleônico de 1804 a 1814; Restauração do Antigo Regime de 1815 a 1830; Monarquia Burguesa de 1830 a 1848; Segunda República de 1848 a 1852; Segundo Império de 1852 a 1971.

Pode-se afirmar que em pouco menos de um século a história da França concentrou praticamente todas as formas políticas características da ordem burguesa do futuro. Esta a principal razão de o estudo dessa fase histórica, menos para recitar feito papagaio e mais para compreender, ser fundamental a quem se interessa por teoria política e análise de conjuntura.

 Mas a arquitetura interna dos escritos historiográficos de Marx é mais ambiciosa que a simples constatação das mudanças políticas. Ao privilegiar a categoria da luta de classes, o autor, ainda que de modo subterrâneo, na verdade, está polemizando que as correntes constitucionalistas do direito, dominantes na época e até hoje, que interpretam as formas da política como uma sequência insossa de regimes normativos de leis. Assim procedendo, essas correntes perde de vista a explicação da passagem de uma forma a outra. Em Marx, a chave da explicação reside precisamente no compasso da luta de classes.

 Leitor apaixonado de Shakespeare, este compasso da luta de classes, em Marx, afigura-se à dinâmica de uma tragédia cujo movimento das máscaras - os papéis de classe encarnados nos partidos e indivíduos - vai dando a tônica a ação (o teatro shakespeariano é especialmente ação) dos dramatis personae.

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