Jaldes
Meneses
Toda
história da cultura é também uma história da barbárie.
Walter
Benjamin
Como
abordar o golpe militar de 31 de março (ou primeiro de abril) de 1964, 52 anos
passados e neste Brasil em transe assombrado com o retorno truculento dos
recalques que pareciam esquecidos na lata de lixo da história? Para tanto, requisita adentrar às camadas profundas dos círculos de um inferno dantesco.
Em sua
bela biografia de Napoleão, publicada logo após o fim da Restauração francesa
(a sequência de 15 anos de último retorno da dinastia dos Bourbons, na qual
ficou evidente a quimera do projeto conservador de retorno do antigo regime),
Stendhal faz uma observação decisiva para quem pretenda escrever a história de
seu próprio tempo: o escriba vai se meter em exumar os companheiros de geração,
as promessas que se dissiparam e os fracassos que ficaram feito cicatrizes, mas
principalmente as viragens. O romancista anota que os homens que foram no
passado os antigos radicais jacobinos são os mesmos moderados que conduziam
naqueles dias os negócios de Estado. Arguto, Stendhal percebe um remoto
sentimento de cumplicidade, de que mesmo ele mesmo participa .
No sentido
stendhaliano, a geração que resistiu ao golpe de 1964, por um tempo foi
indiscutivelmente vitoriosa. A própria presidente Dilma Rousseff, em vias de
ser impichada ou resistir, foi uma das que participaram do esforço de
resistência armada à ditadura, dessa maneira servindo como exemplo - provisório
que seja - do êxito. As gerações se apaziguam e confraternizam, alçadas à
condição de elites. Mas chega o dia de os fantasmas não assimilados mas dissimulados efetuarem a passagem de sintoma a catarse.
No
entanto, parafraseando um livro conhecido (organizado por Edson Telles e
Vladimir Safatle, cuja leitura recomendo), deve-se fazer uma pergunta
pertinente, mas incômoda: alguma coisa restou da ditadura? Por qual razão
desatinada parece que práticas soterradas do passado estão voltando? Tal
indagação só pode ser respondida se virarmos pelo avesso o senso comum, se
formos às zonas de sombra, enfim, se ousarmos encarar, olho no olho, a
tragédia. Não é fácil. Quando ocorre o trauma, a reação espontânea é, de
imediato, ativar as defesas do esquecimento.
Penso no
Pato amarelo da FIESP que pretende nos fazer de trouxas. O espírito de 1964
continua vivíssimo. Posso chocar e surpreender o coro dos contentes (como se
dizia naquela época), mas o “espírito” de 1964 habita onde menos se espera: por
exemplo, nas promessas de progresso e desenvolvimento do ornitorrinco brasileiro
(a remissão ao mamífero aquático que Chico de Oliveira encontrou para definira
nosso capitalismo anômalo).
Somente
operando com esta chave analítica de longa duração pode-se compreender a
revolta das favelas brasileiras, o Estado de Exceção permanente na aplicação do
direito na periferia, cujo mundanismo agora passou das margens para o centro
nas tentativas em curso de criminalizar os movimentos sociais e a esquerda do
espectro política. À primeira visada, pode parece que forço liames entre rios
distantes. Ledo engano. Tudo junto, na estrutura e superestrutura, resulta
neste bicho solto e escroto que atende pelo nome de Brasil.
Não vou
falar do conhecido sobre 1964. Neste ínterim, deixem-me selecionar um enfoque
micro. Quem estudou a fundo a saga das grandes obras de infraestrutura dos
tempos da ditadura, sabe à custa de quanto suor e sangue elas foram erguidas e
de como o lamento de suas vítimas foi soterrado, tanto nos porões da tortura
como nos canteiros de obras. Conhece — para ficar num único exemplo — o trauma
da morte de centenas de operários na queda das vigas do pavimento inferior do
Centro Administrativo da Gameleira (Belo Horizonte, 1971), fato proibido de ser
noticiado, assim como a guerrilha do Araguaia também estava sob o fogo cerrado
da censura. (A propósito, a chamada “tragédia da Gameleira” rendeu uma
extraordinária tese de doutorado do professor mineiro Antonio Libério Borba, na
Unicamp.)
Evidentemente,
como mostra Vladimir Carvalho, no documentário Conterrâneos velhos de guerra
(1980), sobre a construção de Brasília no governo JK, as tendências compulsivas
do progresso na modernidade (encontramo-las como transfiguração estética já no
Fausto de Goethe, 1801) vinham de muito antes e, contudo, foram exponenciadas,
viraram dispositivo técnico (para usar o precioso termo de Heidegger e
Foucault) intrínseco ao regime militar brasileiro.
De
maneira trágica, nas sombras invisíveis do contrato social da democracia,
movem-se as mesmas diretrizes das grandes obras dos tempos da ditadura: a
tendência à superexploração do trabalho nas regiões de vanguarda do
desenvolvimento. Apesar do inequívoco processo de afluência social do lulismo,
hoje repudiado pela maioria das elites econômicas e políticas do Brasil,
continua-se a viver e morrer à mingua, embora se possa ter acesso à televisão,
o celular e a internet. Essa elite, em suas manifestações bizarras de 2016,
reincorpora o pior do “espírito" de 1964. Mostra-se incapaz de formular um
projeto republicano de Brasil, incapaz de verdadeiramente olhar para os de
baixo, de encarar o desafio de eliminar a pobreza extr ema como condição
civilizatória de realização da luta de classes como via de alcançar a cidadania
plena. Afinal, há luta de classes no reino da Dinamarca, mas lá inexiste a
acintosa desigualdade brasileira.
Gostaria
de encerrar este artigo com uma mensagem cifrada. Há muita crítica estritamente
política aos tempos da ditadura, e toda ela é bem-vinda. Mas devemos advertir
que o “espírito” da ditadura só voltará recolhida à caixa de Pandora de onde saiu
recentemente caso logremos ultrapassar o umbral da epiderme política e
consigamos vencer a cegueira de olhos abertos que a irrealidade cotidiana
brasileira impede de enxergar.
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