O inferno somos nós


Jaldes Meneses

“Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homem-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? (…) Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído.”  ANTONIO GRAMSCI, Cadernos do Cárcere 11 (1932-1933)

Mistura nova de Babel de afetos de amizade e tribuna política, as redes sociais, exatamente por isso, podem ter, entre mil e uma utilidades, a serventia de funcionar como uma espécie de rico laboratório a quem se dispor a realizar um estudo sério do discurso como crítica à ideologia. Existe atualmente uma corrente da crítica social neomarxista bastante festejada do conceito de ideologia na qual, pelo lado da esquerda acadêmica, o superstar absoluto é o bufão esloveno Slavoj Zizek. No caso específico de Zizek, a salada servida mistura mais Hegel e Lacan e menos Marx stricto sensu, mais especulação “dialética" da razão pura e menos consciencioso estudo empírico da realidade, do qual o ambicioso projeto original da “crítica da economia política” marxiano jamais se afastou. O próprio Zizek reconheceu em inumeráveis entrevistas a sua incapacidade prática para a clínica psicanalítica. Talvez na falta de clientes, resolveu partir para a teoria social. 

Que quis dizer com isso? O cerne do programa teórico de Zizek, indecifrável para uns, divertido e irresponsável para outros - capaz dos mais certeiros insights em crítica de cinema e dos mais escabrosos veredictos em teoria política -, reside exatamente em apanhar para análise especulativa as produções simbólicas da cultura de massas, com especial atenção ao cinema - a nossa forma industrial enfim descoberta de sonhar acordados -, buscando persuadir-nos que os automatismos da linguagem (o senso comum, os chistes, os atos falhos, etc.) expõem e se abrem à elucidação dos sintomas mais recônditos da alma. 

Verdade que subdivido, um tanto forçosamente, Zizek em livros e temas. Quem teve a pachorra e lê-lo, sabe que ele é autor de um único e repetitivo manuscrito sem fim nem começo, infinito onde for, circundo e espiralado. Por isso, se quiser chamar a este procedimento intelectual heterodoxo de “método”, ele está sempre plagiando a si mesmo, repetindo sem pudor a autocópia de trechos inteiros de um livro noutro. 
Pode-se questionar até onde se quiser os resultados espalhafatosos, à maneira altissonante das superproduções da melhor “filosofia francesa” estruturalista e pósestruturalista - sempre mais afeita a flertar com um Nietzsche de tipo wagneriano que de tipo introspectivo mediterrâneo -, do projeto de crítica à ideologia de Zizek. Contudo, reconheço que seus pressupostos básicos são válidos, quais sejam: antes que na cultura erudita, é na cultura arcaica, moderna e/ou pósmoderna de Hollywood, na pulp fiction policial e de ficção científica dos fanzines, entre outros, que podemos decifrar elementos do código das aparências sociais. Na vida cotidiana do capitalismo avançado, a superfície é profunda, essência e aparência mais parece um jogo de cabra cega do que somente dimensões estanques de conteúdo e forma. Assim como na ficção do cinema, podem ser as redes sociais e a política uma espécie de autocinema plugado on line, portanto instrumentos à mão para fazer a crítica da ideologia. 

Por tudo isso, a propósito, nunca esteve tão atual a conhecida frase de Marx, escrita no“Prefácio à para a crítica da economia política” de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a consciência”. A frase de Marx parece óbvia e ululante. Não é. 

Sejamos brutos ou refinados, doutores da Universidade ou pastores fundamentalistas, o mecanismo nivelador da inescapável trama da ideologia é brutal: toda consciência social, sem exceção, remete ao ser social, às relações objetivas do mundo vivido, até porque todo sujeito, relembrando a genial definição de homem de Gramsci, contém na mesma cápsula indivíduo, sociedade e natureza. Somos o eterno e trágico conflito de três em um. Sempre é bom lembrar que enquanto indivíduos sociais, somos, todos nós – parafraseando a frase de Gramsci -, conformistas de algum conformismo. Por tudo isso, a famosa tirada solipisista do personagem teatral de Sartre, Garcin, em “Entre quatro paredes” - “lénfer, cést lés autres” (o inferno são os outros) – não passa, acaso excluído do cenário alegórico da teatralização, de uma burrice filosófica. O inferno somos nós.

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