A denegação do golpe

Jaldes Meneses

Uma das notas mais instrutivas sobre a política contemporânea dos “Cadernos do Cárcere” de Gramsci encontra-se no Caderno 13, sobre Maquiavel, na qual ele chama a atenção que toda assembléia parlamentar - acrescentaria eu, mesmo sob a égide do assim chamado "Estado Democrático de Direito” - trabalha internamente com algum grau, máximo ou mínimo, de cesarismo. Sei que a expressão cesarismo escapa ao leitor comum sem uma, por assim dizer, “nota técnica”. Obviamente, a expressão remete à história antiga da República Romana, à liderança em circuito fechado, seja por carisma ou controle da assembleia parlamentar, que César exercia sobre seus pares. O cesarismo trata-se da ossatura do golpe parlamentar.

O genial filósofo político comunista buscava explicar as condições de ascensão de Mussolini e do fascismo na Itália (poderia acrescentar que o nazismo subiu ao poder em configuração semelhante). É pouco conhecido e refletido o fato de Mussolini (nem Hitler) não ter chegando ao poder em 1922 através de uma revolução ou um golpe militar violento. A estratégia era de guerra de posição, de ocupação de espaços na sociedade civil e política. Mussolini foi chamado pelo rei Vítor Emanuel III a ocupar o cargo de primeiro-ministro em meio a uma grave crise catastrófica - ou seja, de equilíbrio de forças antagônicas. Sob a pressão encenada da “Marcha sobre Roma”, deu-se ali uma espécie de “golpe parlamentar”, na qual Mussolini conviveu com o rei numa curiosa diarquia (a partilha do poder entre o Rei e o Duce), até ser escorraçado pelo monarca em 1943, de onde partiu para fundar, em algumas partes do território italiano, o regime títere da República de Saló (República Social Italiana).

No domingo passado, conduzido pelo gangster Eduardo Cunha, o parlamento brasileiro atuou em grau máximo de cesarismo e encenou a primeira etapa de um golpe parlamentar. Realmente, parafraseando Marx, foi um grande “golpe de mão”. Espero que o senado iniba a segunda fase, mas todos sabem ser praticamente uma missão impossível.

“O Brasil nunca desceu tão baixo”, afirmou na televisão portuguesa o romancista e analista político Miguel Sousa Tavares. Encenamos, para a vergonha do mundo, entre invocações a Deus a guisa de fundamentalismo e à família de patrimonialismo, o carnaval da miséria brasileira. É como se o FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assolam o País) de Stanislaw Ponte Preta, a família de Nelson Rodrigues, a paródia burlesca de desmoralização burguesa de Oswald de Andrade, tudo isso sintetizado no liquidificar do tropicalismo de Caetano e Zé Celso, ressurgissem da tumba. A diferença é que no século XXI temos a babel das redes sociais, para nela emergirem tanto a esgotolandia como também os antídotos de contrahegemonia.

Sobrevirá doravante um regime fascista no Brasil? Evidentemente que não, por mais que os meneios cavernosos de Jair Bolsonaro ativem o fascismo em um segmento isolado, mas crescente, da sociedade civil. Menos que a 1964, nosso golpe parlamentar recua a elementos do período histórico compreendido entre 1945/64, de luta política radicalizada em torno de dois projetos (um nacional-popular e emergente e outro neocosmopolita de alinhamento aos Estados Unidos, só para mencionar a chave das relações internacionais) e ativa repressão ao Partido Comunista.

O novo regime republicano será um ornitorrinco (para relembrar a síntese de Chico de Oliveira sobre o Brasil). Demos um passo decisivo na configuração de um Estado Democrático de Direito deformado pela nossa forma capitalista historicamente heterodoxa. Todo o nosso passivo histórico foi agravado pelas circunstâncias do mal-estar do hoje: a tragédia de haver emergindo, através de um golpe parlamentar, a possibilidade de uma hegemonia autoritária, certamente ativando mais núcleos repressivos de Estado de Exceção. Fabricantes de balas de borracha e gás lacrimogêneo devem estar exultantes.  
  
Em psicanálise, denegação é sintoma. O que é negado é. Por isso, mais que organizar o campo simbólico das vítimas, a contestação veemente do golpe organiza o lado dos golpistas. O golpe não permite mais “manter as aparências”. O “golpe irrita” escutei de um golpista. Pouco importa, se irrita é por que o golpe houve e a resultante é um bicho muito feio, viu Rede Globo e “irritados" ministros do STF?

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