Para um balanço do iluminismo


Jaldes Meneses

De onde provém a força societária irresistível, profana, dos Direitos do Homem? A que ethos social atendeu a sua positivação histórica?

Para responder, precisamos recorrer a história social do iluminismo europeu e a autêntica reforma intelectual e moral que seus ideais promoveram, antecedendo o processo político das revoluções burguesas. Escreve Gramsci, um de meus autores de cabeceira: "toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de idéias em agregados de homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na mesma situação. O (...) exemplo mais próximo de nós (...) é o da Revolução Francesa. O período cultural que a antecedeu, chamado de iluminismo, tão difamado pelos críticos superficiais da razão teórica, não foi de modo algum – ou, pelo menos, não foi inteiramente – aquele borboletear de inteligências enciclopédicas superficiais que discorriam sobre tudo e sobre todos com idêntica imperturbabilidade (...) Foi ele mesmo uma magnífica revolução, mediante a qual, como observa agudamente De Sanctis em sua Storia delle letteratura italiana, formou-se em toda a Europa uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus elementos às dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a sangrenta revolta que depois teve lugar na França."

A questão do balanço histórico do iluminismo é sempre difícil, por uma série de motivos. Em primeiro lugar, porque não é possível fazer a tipologia de um movimento intelectual tão vasto e contraditório sem pecar por reducionismo. Muitas vezes, por exemplo, considera-se o iluminismo eurocêntrico e, ato contínuo, propagador de uma ideologia expansiva e unilinear do progresso ocidental contra os povos periféricos, porém, diversos autores iluministas apresentaram desconfiança quanto ao eurocentrismo e o progressismo vesgo. Minoritária e não marginal, a desconfiança abarcava autores díspares do caleidoscópio do iluminismo, enlaçando desde personalidades moderadas como o Barão de Montesquieu, que nas Cartas persas (1991) – irônica narrativa da viagem de dois persas a Paris –, pôs em dúvida a superioridade da cultura eurocentrica como progresso civilizatório mundial, até a figura outsider de Rousseau, que ousou contrariar o senso comum de seus contemporâneos ao afirmar, no Discurso sobre as ciências e as artes (1750/1987), que ambas atividades não estavam contribuindo para o progresso dos costumes humanos, mas talvez até corrompendo-os. Depois, os philosophes eram politicamente ambíguos, fiaram um certo acordo tácito com o Ancien Regime, tanto trabalhavam ad hoc para os monarcas absolutos como defendiam a autonomia intelectual e um conteúdo emancipacionista para a formação educacional do povo, sem obedecer a hierarquias senão o mérito individual (Koselleck, 1999). Os philosophes revezavam entre a masmorra, o palácio e o exílio: Diderot fez o projeto de Universidade de Moscou, sob encomenda de Catarina da Rússia, mas foi encarcerado por ordens de Luís XVI na Torre de Vincennes; Voltaire freqüentou a corte de Frederico II, na Prússia, mas teve de fugir da corte alemã por desentendimentos com o mesmo rei, etc.

Prendamo-nos na questão da ambigüidade do Iluminismo. A ambigüidade deriva do fato que o movimento iluminista concentrou seus esforços, mais que na subversividade imediata da luta política aberta, no alargamento do terreno de uma moral emergente, visando contribuir para torna-la popular e de massas. Alguns autores, como o sociólogo Renato Ortiz, aludem a um abismo entre a cultura popular e a cultura erudita na Europa oitocentista, negando a possibilidade histórica do iluminismo ter-se constituído num fenômeno popular. Faço questão de citá-lo: "não se pode perder de vista que não existe um iluminismo das massas: quando [se] fala num declínio da magia, (...) [está-se] referindo à regressão da consciência mágica de uma elite. Podemos dizer que este racionalismo é dominante no sentido de que ´faz´a história do mundo ocidental, mas que é certamente minoritário e inexpressivo diante do conjunto da população.

Engano crasso de Ortiz. Partimos de uma premissa totalmente inversa: em seus escaninhos mais profundos, a cultura iluminista tinha uma base objetiva remota na cultura popular, correspondia a uma evolução das manifestações de bom senso das massas citadinas e mesmo camponesas e, até mesmo, nos (muitos) elementos racionalistas da crença católica. Conforme escrevem Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento (1985), podemos encontrar o esclarecimento na estrutura interna do mito e da razão.



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