Iluminismo e individualismo moderno
Jaldes Meneses
Fiz ver no artigo da semana passada que a moral emergente da cultura iluminista não se tratava de um artifício de certos intelectuais descontentes: estava em causa a fundamentação filosófica de um processo social de enorme escopo, a emersão de uma figura histórica nova – o indivíduo moderno –, que não era uma criação artificial, mas o ponto de chegada de elementos que já despontavam desde muito na cultura ocidental e na religião monoteísta cristã, rompendo o cerco de dominância da vertente organicista e escolástica de compreensão da sociedade, hegemônica durante a medievalidade.
Já na doutrina teológica medieval da "responsabilidade da fé”, encontramos a estrutura dura do individualismo, depois dessacralizada, mas mantida encapuzada, pela tradição iluminista. Só assim podemos entender o alcance profundo das filosofias seculares do direito natural e do contrato social dos séculos XVI, XVII e XVIII (Althusius, Pufendorf, Espinosa, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, etc.). Rompendo com a tradição da filosofia antiga clássica e da escolástica medieval da lei natural – vale dizer, leis duras de limitação da ação humana –, a filosofia moderna alterou a ênfase anterior na lei natural para a nova ênfase no direito natural – ampliando assim o espaço da ação individual –, mas, por outro lado, se fundamenta na curiosa idéia”anti-historicista da existência de um hipotético indivíduo natural anterior a sociedade, indivíduos esses que se reuniam depois de formados para estabelecer um contrato (ou pacto) de coexistência social, destoando assim da tradição aristotélica do zoon politikon, na qual o indivíduo é ponto de chegada, resultado, e não ponto de partida, gênese. Lembrando uma passagem de Marx em “A questão judaica", o homem indivíduo-sujeito do contrato social tem a feição de uma “mônada isolada, dobrada em si mesma”, é portador de uma identidade inata, uma consciência espontânea, anterior até mesmo à experiência empírica.
Na verdade, hoje talvez já esteja mais ou menos claro que o hipotético contrato social entabulado pelos indivíduos-mônadas no passado da humanidade não tinha nada disso, foi uma representação que a teoria política moderna fez das transformações que estavam acontecendo em seu mundo contemporâneo, no cotidiano da sociedade civil e da política de Estado. Escreve Marx: "[foi] uma antecipação da ´sociedade´ que se preparava desde o século XVI, e no século XVIII deu larguíssimos passos em direção à sua maturidade. Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas do século XVIII (...) imaginam este indivíduo do século XVIII (...) como um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam como um indivíduo conforme a natureza – dentro da representação que tinham de natureza humana –, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Esta ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente. Steuart, que em muitos aspectos se opõe ao século XVIII e que na sua condição de aristocrata se situa mais sobre o terreno histórico, escapou desta ingenuidade”.
Caso levemos Marx e Gramsci em consideração, os dois autores estão observando que a cesura com o historicismo conservador e o organicismo medieval, promovida pelo ethos do indivíduo moderno, deve ser vista como um passo à frente, mas, por outro lado, acarretou uma certa intransparência das relações sociais que criaram o mesmo homem moderno. Esta é a premissa básica de crítica às doutrinas do direito natural e, depois, do seu mais dileto filho, o liberalismo moderno (econômico e político). Indivíduo-mônada (isolado) e indivíduo-coletivo (relações) são duas maneiras de conceber a vida na sociedade, mas não são dois conceitos antitéticos; na verdade, o surgimento do indivíduo coletivo (relações) – ou sociedade –, realiza a síntese dialética entre a natureza e o homem físico, corporal, como gostava de chamar Rousseau (1753/1999). É fundamental, neste ínterim, dar lugar de destaque ao papel mediador do trabalho entre homem e natureza, como produtor de riquezas – dimensão observada pioneiramente por Rousseau e Locke –, processo este que fez, ao longo da história, afastar o homem de suas “barreiras naturais” (Marx). O homem moderno era, digamos, um homem mediado.
Visando homenagear Rousseau, grande trânsfuga do contratualismo, usando sua terminologia (pois poderíamos usar terminologias mais contemporâneas), o homem moderno era uma síntese histórica que incluía o homem corporal, psicológico e moral –, liberto da sujeição absoluta das forças da natureza pelas relações sociais que construiu através do trabalho e da linguagem, ao passo que na aurora da história humana, ainda não tínhamos (a não ser como tênues embriões) indivíduos-mônadas ou indivíduos-coletivos: tínhamos uma forma de coletivo adâmica, quase intrínseca à natureza (homem físico e homem psicológico), lugar para aonde o jusnaturalismo transportou o homem mediado das relações sociais da idade moderna, e seus principais valores, naturalizando-os.
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