Crises Macunaímicas, Traquinagens Jurídicas, Devaneios de Esquerda


Jaldes Meneses

Enquanto houver bambu, lá vai flecha. Não estou me referindo a Janot ou o Ministério Público, mas à abundância de bambus nos arraiais da esquerda brasileira. Refiro-me à dura polêmica estabelecida pela divulgação da nota da executiva nacional do PT sobre o “caso de Aécio Neves”.

Não se fazem mais “erros históricos” como no passado. A exemplo de quando a direção do PCB em 1956 retardou o debate sobre o XX Congresso do PCUS e o stalinismo, ou quando, novamente, retardou o balanço da atuação amorfa no golpe de 1964. Estávamos diante de “erros históricos”, de ideologia e estratégia, de larga envergadura.

A coisa banalizou. Não sou filiado ao PT, portanto desimpedido de qualquer alinhamento de luta interna. Sei das insuficiências da direção deste partido, especialmente no teste de 13 anos de governo, em que se pese o que fez de positivo. Entretanto, na relação governo-partido, no essencial, o partido perdeu a autonomia e mais parecia uma correia de transmissão do centro decisório das políticas de Estado. O passivo é muito forte e as feridas ainda estão em aberto.

Trata-se de argumento no mínimo açodado afirmar que o partido cometeu “erro histórico” fechando posição na executiva e na bancada do senado - bem compreendido -, não “a favor de Aécio Neves”, mas a favor de prescrição da Constituição Federal. Não foi “erro histórico”, embora possa se ter cometido, até onde a vista alcança, erro tático.

Uma das características históricas da esquerda organizada em partidos é tentar quase sempre agir racionalmente, promover congressos, aprovar notas e resoluções. O “erro tático’” (e não histórico do PT) foi ter divulgado uma nota na bucha de iminência de uma crise institucional entre o senado e o STF. Interessante, o PSDB (partido de Aécio) até hoje não se pronunciou como partido. Preferiram fazer o que sabem magistralmente: agir nos bastidores negociando com as cabeças coroadas do STF uma resolução da crise.

Ou seja: mais uma vez, conforme o manual da prática histórica, as crises entre os poderes no Brasil são resolvidas - até quando a relação de forças permitir, mas sempre como primeiro recurso - nos bastidores e através de um “acordão” das elites dominantes. É o que vai, certamente, acontecer. Na próxima semana, o presidente Eunício adiará para as calendas a decisão no plenário do senado, ao passo que o supremo desautorizará a decisão da primeira turma. E la nave va.

Para além da racionalidade da nota - do bom hábito de escrever e publicitar deliberações políticas -, é certo que ao PT e demais senadores de esquerda só havia a possibilidade de duas posições. Não três. As duas, muito difíceis: ou fazer o que anunciou e votar pela rejeição da licença das medidas contra Aécio, ou se abster de votar, em ambas denunciado Aécio como um dos capitães do golpe. A posição de coonestar, por meio de qualquer retórica, a decisão da primeira turma, está fora de qualquer cogitação. Neste caso, sim, o erro seria estratégico.

Neste ínterim, vale dialogar com os argumentos expostos no artigo de Aldo Fornazieri, intitulado “PT joga água no moinho dos golpistas”. O texto de Fornazieri, entre tantas outras opiniões publicadas, expõe melhor o conjunto das críticas ao comportamento da direção do PT neste episódio.

Muita calma nesta hora. O juízo de Fornazieri é fulminante: “… a direção do PT (…) adota posições não só contra a vontade da maioria da sua militância, da sua base social e do seu eleitorado, mas também contra o entendimento da Constituição”.

As palavras devem ter a sua exata medida. Não se explica no argumento anterior como esta direção se mantém. A resposta da força do aparelho conta, mas até para dirigir um aparelho burocratizado é necessário o mínimo de pé no chão da realidade. Sem fazer a apologia de uma direção de vanguarda, ciente de que a direção do PT está longe de sê-lo, às vezes a direção precisa nadar contra a maré do senso comum - inclusive da militância e dos eleitores. Pode ser pedagógico. Longe de comparar, é evidente, a distância épica abissal entre as teses contrafactuais de Lênin na Estação Finlândia, que resultou na grande revolução russa, e a jabuticaba nacional do “caso Aécio”, ao menos fica a lição de que nem sempre se acomodar às opiniões da maioria significa boa política.

Marilena Chauí produziu texto brilhante nos tempos da ditadura sobre os ardis retóricos do “saber competente” dos tecnocratas serviçais do regime. O vírus dos ardis do saber competente da ditadura instalou-se na Suprema Corte. Esquecendo o juridiquês e privilegiando o efeito da retórica política, não tenho dúvida: os discursos de Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber na sessão da Primeira Turma do Supremo, que decidiu pelo tal de “recolhimento domiciliar” do senador mineiro, não passa de senso comum justiceiro sob o invólucro de populismo jurídico.

Curiosamente, o texto de Fornazieiri incorpora como corretas todas as argumentações duvidosas do trio de ouro da primeira turma. Fica parecendo que o trio de ouro detém o monopólio argumentativo do espírito das leis.  É chato para caramba enveredar pelo campo da hermenêutica jurídica - insuficiente como critério exclusivo de qualquer decisão política. Mas como o autor escolheu adotar um caminho escarpado, sinto-me na obrigação de também tecer considerações de polêmicas jurídicas, ultimamente em moda no Brasil.

Fornazieri cita o caput do artigo 53 da Constituição lembrando que a imunidade parlamentar refere-se a atos e palavras referentes às atividades do mandato, o que nem de longe tangencia o caso de corrupção de Aécio Neves. Bingo. No entanto, em seguida os dois parágrafos do mesmo artigo estabelecem que os deputados e senadores só possam ser presos em fragrante delito ou crime inafiançável (mesmo assim, após a licença de seus pares). O autor esquece-se deste complemento, nem que seja para relativizar a visão por ele abraçada.

Outra questão. A nota do PT afirma que o senado é soberano. Realmente, a afirmação contém uma ligeireza. Quem é soberano é o povo. No entanto, a constituição, neste em outros casos, delega ao Senado a prerrogativa soberana de decidir. Havendo erro na nota do PT, portanto, foi mais por elipse - e não, certamente, por incompreensão. Igualmente, Fornazieiri, por exemplo, cita o caput do artigo 53 sem mencionar os parágrafos.

Quem quiser que leve a sério a consistência da sanção do tal de “recolhimento noturno” (previsto no artigo 319 do Código Penal), no caso de afastamento de um senador, como parece levar Fornazieri. Deve-se, contudo, lembrar que o artigo 319 vem no desdobramento do artigo 312 do CPP, que sobre as condições da prisão preventiva. Em direito, quem pode mais, pode menos. Então, se o senado pode deliberar inclusive sobre prisão em flagrante e crime inafiançável de um senador, certamente também pode sobre o eufemístico “recolhimento noturno”.

Estou apenas limpando terreno minado ao apresentar essas querelas jurídicas, fisgadas do universo de saber competente das alegorias de Franz Kafka e do Doutor Simão Bacamarte. Agora o principal.

Quem pretende ser alternativa, deve criticar uma direção por seus piores motivos. Os que criticam à priori a nota do PT não compreenderam a fundo a questão da montagem de um Estado de Exceção no Brasil, de que o golpe parlamentar foi um capítulo importante, mas insuficiente como categoria analítica.

A rigor, a estrutura de qualquer decisão no aparelho jurídico inclui a questão lógica da opção entre a aplicação da norma ou da exceção. A tradição de Nietzsche, Foucault, Agamben, etc., saca a lógica da decisão jurídica brilhantemente. Qualquer juiz de província - obviamente contrário à letra dos códigos -, em termos lógicos, vê-se o tempo inteiro diante da opção entre a lei e a norma. Aqui habita a microestrutura lógica do lawfare, por exemplo.

Visando inibir a supremacia da exceção sobre a regra no direito, existem os mecanismos de controle das corregedorias, dos conselhos e dos tribunais superiores. O problema é quando a exceção à norma vai se tornando a regra. É isso que está aqui acontecendo no Brasil, aonde a exceção vem se transformando na forma jurídica do neoliberalismo. O grave no Brasil atual é que exatamente a Corte Superior vem se transformando no principal fórum da jurisprudência do ad hoc, da exceção.

Um dos sintomas de qualquer crise é a prevalência do senso comum sobre a análise. O fascismo se alimenta do senso comum, mas também existe um senso comum de esquerda. Afirmar, sem mediações, que o PT entrou em conluio com Aécio Neves não passa de exploração do senso comum. Deixemos as apelações do lado deletério do senso comum na alçada de negócios da Rede Globo.


Para bom entendedor, Macunaíma dá nó em Descartes. Crises Macunaímicas, Traquinagens Jurídicas, Devaneios de Esquerda.

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