Não sou eu quem me navega
Resenha: Dardot, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo (ensaio sobre a sociedade neoliberal). São Paulo, Boitempo, 20016.
Jaldes Meneses
Noves fora a apologética do mainstream regiamente financiado, ao longo de mais de trinta anos se consolidaram duas vertentes de estudos críticos, não necessariamente excludentes, sobre o neoliberalismo. A primeira, mais tradicional e difundida, tem na síntese “Neoliberalismo - história e implicações”, de David Harvey (2012), um de seus esteios característicos. A segunda, mais recente, atende pela vertente inaugurada pelos estudos de Pierre Dardot e Christian Laval, cujo seminal “A nova razão do mundo” (2016), recentemente editado no Brasil, mistura criativamente e sem concessões ao ecletismo as démarches de Marx e Foucault.
Lukács sugeriu a possibilidade de uma crítica e autocrítica "ontológica” das ciências particulares (entre as quais as ciências sociais) pela filosofia. No caso particular de uma “crítica ontológica” de Foucault a partir de Marx - verdadeira heresia para certo marxismo sectário -, deve-se elucidar o valor heurístico de muitas descobertas, desde que devidamente depuradas de quaisquer resíduos formalistas e remetido em seguida a uma totalidade social historicizada. Igualmente, em outro diapasão, Gramsci postulou a possibilidade de “tradutibilidade” de uma linguagem científica e filosófica em outra. Portanto, não deve surpreender que Foucault venha a complementar e abrir picadas a uma análise de viés marxista. Negar-se a priori à possibilidade de abertura e renovação permitidos por uma “crítica ontológica” ou um exercício de “tradutibilidade” conscienciosos é simplesmente escolástico.
Na vertente canônica o neoliberalismo seria definido, antes de tudo, como ideologia política. A narrativa de sua hegemonia no mundo seria de fácil compreensão: a partir da competição eleitoral, ou no modelo de exceção de instauração da ditadura, o neoliberalismo obtém vitórias contra o trabalhismo (Margaret Thatcher, Reino Unido, 1979), a esquerda revolucionária (Augusto Pinochet, Chile, 1973), os liberais de esquerda (Ronald Reagan, Estados Unidos 1981). A quebra das resistências alça o neoliberalismo - antes restrito aos círculos intelectuais conservadores e insatisfeitos - à condição de política econômica de Estado diretamente emanada de uma ideologia internacional dos parceiros do grande capital. Doravante, passam a pontificar como dogma os mandamentos sagrados e as articulações de cúpula dos technopols - o “Consenso de Washington” (1989) a mais famosa de todas. Neste desenho, o neoliberalismo aparece como realidade real de dominação pela força - que é -, mas esquecendo a outra realidade real de interpelação e construção de graus de consenso social e de massas.
Por seu turno, incluindo e não descartando o neoliberalismo como ideologia e subsequente política de Estado, Dardot e Laval ampliam enormemente o conceito. Para eles, “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica é (…) uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados” (2016: 17).
Influenciados por Marx e Foucault os dois autores franceses invocam, indiretamente e certamente sem querer, o “espírito” da letra de Gramsci (jamais citado, mas quem sabe “agente oculto”?). Bem lembrado, o comunista italiano formulava bastante jovem - na experiência turinesa dos “Conselhos de Fábrica” -, que “a hegemonia começa na fábrica” e, anos mais tarde, maduro e padecendo no cárcere, estendeu o conceito de hegemonia - que continuava nascendo nas fábricas - ao Estado e os aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil.
A via de acesso a esta concepção integral (governantes + governados) do neoliberalismo em Darton e Laval é a noção de governamentalidade de Foucault. No genial filósofo francês dos sixties, governamentalidade significa um poder externo (a coerção) + as “técnicas de si” (o processo social de individuação). Assim, o neoliberalismo não é apenas uma coerção estatal externa ao sujeito, leia-se, um processo de reformas econômicas e financeiras conduzido por burocratas, mas principalmente (valemo-nos novamente de Gramsci) um vasto e profundo processo de transformações moleculares na sociedade civil que movimenta corpos e psiquê. Aí reside o âmago de sua força, a extrema resiliência e a capacidade de reconstrução do status quo quando desatadas as crises.
Neoliberalismo não é somente Estado restrito, mas Revolução Intelectual e Moral, Estado ampliado. Por um ser um movimento combinado de cima e debaixo, foi demasiado otimista (além de revelar cegueira analítica) o diagnóstico que anteviu na crise de 2008 o “fim do neoliberalismo”, uma revanche do “retorno do Estado” e revertério rumo às experiências recém-passadas de Welfare State. Desde 1944, data em que escreveu “A grande transformação” visando polemizar com o liberalismo da belle époque, mas especialmente de olho nas nascentes correntes neoliberais, Karl Polanyi deixou claro que a distinção entre liberalismo clássico e neoliberalismo reside exatamente na consciência que toda economia requisita um protagonismo estatal, não apenas na inspeção de garantia dos contratos, mas no ativismo político aberto em prol do capital. Pensar capital fora da política trata-se de um conto de fadas de final infeliz Por isso, apesar do discurso, já de quatro décadas, em defesa de um inalcançável “estado mínimo” não decaiu a arrecadação, nem rigorosamente diminuiu a máquina e os contratos do Estado. Apenas desviou-se - a guisa de uma retórica de “responsabilidade fiscal” - a ordem de prioridade dos recursos do fundo público, das políticas sociais para a remuneração da dívida pública.
Na verdade, a crise de 2008 acionou o processo de restauração do sistema pelo ativismo estatal, a exemplo de Obama salvando bancos de investimento e montadoras de automóveis. Pelo alto da superestrutura, os mecanismos ativados por Obama correspondiam a um conjunto de decisões estratégicas do Estado americano na esfera das relações de poder da política monetária. O marco inicial de tudo isso foi o annus mirabilis de 1971, ocasião na qual o mágico FED (Banco Central americano) decidiu pela abolição unilateral da conversibilidade do dólar em ouro. Estava extinto o padrão-ouro nos termos dos acordos de Bretton Woods, acarretando a prevalência do sistema de câmbio flutuante e o mastodôntico crescimento da dívida pública. Desde então, em escala crescente e ascendente, frequentes e imanentes, as crises especulativas se tornaram a dor de cabeça de qualquer chefe de executivo, na periferia ou no centro do mundo. O dinheiro e a plutocracia, que antes já tinham muito poder, contudo eram regulados pelo compromisso de classe do pós-guerra e as consequentes políticas econômicas keynesianas, assume sem peias o poder e tempo do mundo.
Esse movimento das superestruturas estatais é verdadeiro, mas falta o outro lado da moeda, certamente mais decisivo. O escopo de influência do neoliberalismo excede a esfera puramente estatal e mercantil, o tradicional jogo de trocas entre Estado e Mercado. Como dizem corretamente Dartot e Laval “ele [o neoliberalismo] estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade ‘contábil’ pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos”. Estado e mercado são muito poderosos, sem dúvida, mas a educação e o controle da alma são os maiores ativos.
Talvez, até mais que vivendo um tempo de “pós-verdade”, estejamos adentrando em um tempo de “pós-democracia”, ativado pelo processo mundial de uma autêntica revolução neoliberal. (Neste caso, invocar a imagem de revolução talvez seja o mais correto no estudo do neoliberalismo. O movimento neoliberal está longe de ser puramente defensivo, ou preventivo à maneira de uma contrarrevolução, especialmente no plano das ideias e da interpelação persuasiva e direta dos sujeitos).
Nos tempos do neoliberalismo, o direito assume um papel estratégico na construção do “novo homem”. Assim, antes de puramente econômica, a grande contribuição dos autores clássicos do neoliberalismo - especialmente Von Mises e Hayek (que jamais se sujeitaram à condição de economistas puros) - foi insular o direito privado do alvitre de qualquer deliberação democrática, principalmente o sufrágio universal. Von Mises e Hayek foram pioneiros arqueológicos, figuras grandes de intelectuais individuais. Hoje, o neoliberalismo é mais que uma elaboração teórica, mas um organizador coletivo da burguesia mundial quem conta com os aparelhos das instituições internacionais, os governos nacionais, as instituições jurídicas, mas principalmente, uma vasta rede de aparelhos privados de hegemonia da sociedade civil.
O insulamento do direito privado é fundamental. Por assim dizer, “naturaliza-se” socialmente a subjetividade mercantil, provocando o surgimento e a expansão da subjetividade do sujeito-empresário-de-si-mesmo. O “homem-uber"/a "família food truck”. Todo indivíduo é uma empresa, assim reza o lema que o “espírito do mundo” nos interpela e assedia em tempo integral.
Seria ingenuidade pensar que a nova racionalidade neoliberal não tivesse repercussões diretas no mundo da política tout court, nem que o senso comum disseminado do novo “homem-uber" deixasse de impactar gravemente a correlação de forças nas horas de crise e decisão política do Estado. No campo político, o neoliberalismo é o coveiro da democracia, o pai e a mãe do Estado de Exceção. Este pode ser um fecundo Fio de Ariadne na análise dos recentes acontecimentos nacionais.
Neste aspecto, o impeachment de Dilma Rousseff pode ser caracterizado como um golpe frio, institucional, parlamentar, midiático, líquido - a denominação que se quiser -, mas foi, principalmente e em síntese, um golpe neoliberal. Tanto é assim que o vice Michel Temer só se tornou alternativa crível de poder depois lançou e Dilma recusou o programa batizado de “Uma ponte para o futuro”, balizando uma alternativa de poder à direita.
Temer vem fazendo o que prometeu na letra da "Ponte...", em duas pinças. Por um lado, a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos) constitucionaliza como nova cláusula pétrea do orçamento público os pagamentos dos rendimentos do capital (mesmo ao talante do crescimento da dívida bruta, desmoralizando os argumentos de “responsabilidade fiscal”). Por outro lado, a reforma trabalhista desconstitucionaliza de cambulhada o processo histórico de luta de classes e constitucionalização dos direitos do trabalho.
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