Gramsci e Lenin
Jaldes Meneses
"Se eu não me queimo
Se tu não te queimas
Se nós não nos queimamos
Como as trevas se tornarão claridade”
- Nazım Hikmet
A viragem na linha política produzida em 1921/22 no Movimento Comunista Internacional – NEP e frente única, duas respostas objetivas e combinadas a movimentos de transformação da própria realidade russa e européia –, compõe um marco histórico e teórico fundamental na periodização de Gramsci sobre o processo de revolução passiva no século XX. O processo contemporâneo de revolução passiva no século XX foi desatado exatamente como um subproduto da Revolução Russa: as respostas (políticas, econômicas, culturais, etc.) do sistema capitalista contra a sociabilidade gerada pelo novo tipo de revolução socialista (os sovietes) – emblematizados no fascismo e no fordismo –, e vice-versa, nos esforços promovidos pelos próprios soviéticos na evolução da Revolução Socialista – a NEP.
Gramsci chegou à URSS em 1922, avesso à política da frente única (defendendo, com nuanças mais flexíveis, as posições esquerdistas de Bordiga), mas logo é convencido dos acertos da nova política. Sobre a importância da estada de Gramsci na URSS e do contato mais direto com a formulação lenineana na formação do seu pensamento estratégico, escreve Buci-Glucksmann (1990: 243-244): “essa experiência prática da Terceira Internacional sob Lenin permitirá a Gramsci assistir a múltiplas reuniões, manter relações pessoais com os principais dirigentes, descobrir a realidade soviética. Ela terá uma importância decisiva no desenvolvimento de seu pensamento político e teórico (...) é precisamente com relação a essa palavra de ordem de ‘frente única’ que Gramsci, retomando ‘certas intuições’ de Lenin, desenvolverá toda a sua pesquisa teórica referente aos problemas da revolução no Ocidente”.
Neste período (1922-1923), consolida-se uma transformação no pensamento de Lenin, cujos últimos escritos antes de morrer insinuam uma proposta de modificação da estratégia do movimento comunista na Europa Ocidental. Talvez o texto onde a proposta de alteração da estratégica no front ocidental se faça mais explicito em Lenin seja em A guerra e a paz, publicado em 1923, onde lê-se: “a revolução [no ocidente] não virá tão rápido quanto esperávamos. Isso, a história provou. É necessário aceitá-lo como um fato, é necessário levar em conta que a revolução socialista mundial nos países avançados não pode começar com a mesma facilidade que na Rússia, país de Nicolau II e Rasputin, onde uma enorme parte da população se desinteressava completamente pelo que se passava na periferia, e pelo que eram os povos que a habitavam. Em um país como esse, era fácil começar a revolução, era como levantar uma pluma. Mas, começar sem preparação uma revolução em um país onde o capitalismo se desenvolveu, onde ele deu uma cultura e uma organização democráticas a todos os homens até o último, seria uma erro, um absurdo. Hoje, nós estamos apenas começando a abordar o período doloroso do início das revoluções socialistas”.
Outra importante reflexão de Lenin (1980: 670-681) encontra-se em seu último texto, chamado É melhor menos, mas melhor, ditado no leito de um hospital em 1923. Nele, o dirigente russo convida o movimento comunista a “estudar” a nova realidade do capitalismo e da construção do socialismo, tidas por ele como pouco conhecidas, e propõe uma estratégia mais gradualista, reconhecendo uma certa estabilização no sistema de relações de força internacionais no mundo do capitalismo monopolista. Embora Lenin credite, neste artigo, a estabilização a um fator único de fato existente – a “exploração” do país imperialista derrotado na guerra (a Alemanha) pelos demais –, porém, esmaecendo elementos novos de política econômica no capitalismo monopolista (aumento da intervenção estatal na esfera da reprodução social, maior liberdade de praticar política monetária e fiscal, etc.), e reforçando a retórica do argumento, o fulcro da sua análise – correta –, é a de que “os mais velhos Estados do Ocidente encontraram-se, graças à vitória [na guerra], em condições de poder aproveitar essa vitória para fazer às suas classes oprimidas uma série de pequenas concessões, concessões que, apesar de tudo, atrasam neles o movimento revolucionário, criando um certo simulacro de ‘paz social’” (679).
Em É melhor menos, mas melhor – encontra-se uma importante aspiração: “civilizar” (1980: 680) a sociedade russa. Qual o significado de "civilizar"? No cálculo estratégico de Lenin, como a atualidade da revolução migrou da Europa ocidental para o oriente (Rússia, China, Índia, etc.), poderia haver em determinado momento um conflito “entre o Ocidente imperialista contra-revolucionário e o Oriente revolucionário e nacionalista, entre os Estados mais civilizados do mundo e os Estados atrasados à maneira oriental” (680), porém, não obstante esses últimos constituírem maioria, o conflito tenderia a lograr vitorioso o ocidente, caso o oriente não conseguisse civilizar-se (isto é, ocidentalizar-se).
No fundo, ao mencionar o termo civilização, Lenin estava propondo uma Revolução Intelectual e Moral junto com as medidas econômicas de construção do socialismo, mas com uma clivagem essencial em relação à Revolução Intelectual e Moral encaminhada pelo modelo societário prussiano. Certamente, o projeto de Lenin aproximava-se mais (com as diferenças evidentes de época histórica) de outra Revolução Intelectual e Moral, a do iluminismo europeu (principalmente francês) moderno, talvez com um diferencial em relação a este: no modelo societário soviético, tendo em vista um estágio mundial racionalizado da divisão social do trabalho que o iluminismo não conheceu, a capacidade de iniciativa das massas e do trabalho intelectual deveria provir diretamente da estruturas da sociedade civil (que criariam seus próprios intelectuais), sem requisitar apoio ou mediação nas estruturas do aparelho estatal.
Vale repisar a questão, pois tem elevado conteúdo estratégico: caso as principais iniciativas econômicas e culturais, no modelo societário soviético, não proviessem diretamente de baixo (das estruturas) e dependessem sempre das ordens emanadas de cima (das superestruturas), o regime soviético tenderia a um fracasso de longo prazo. Gramsci foi um autor bastante atento a esse aspecto (certamente contraditório e não suficientemente desenvolvido) do pensamento de Lenin e de tendências que desabrochavam na vida cotidiana soviética, quando de sua estada nesse país, como podemos ler nesta entusiasmada carta de 1924, dirigida a Zino Zini: “o espetáculo cotidiano que presenciei na Rússia de um povo que cria uma vida nova, costumes e relações novas, novas maneiras de pensar e de se colocar os problemas, torna-me hoje mais otimista em relação ao nosso país e seu futuro. Algo novo existe no mundo e trabalha subterraneamente, e como que molecularmente, de forma irresistível (…)”
Virtude notável em toda a obra política de Lenin, aguçada nos últimos escritos, é a sua persistente convocação dos militantes do partido bolchevique ganhar a simpatia e a adesão da maioria das massas – efetivar uma Revolução Intelectual e Moral. Não se tratava de uma convocação retórica, uma cena desprovida de conteúdo: pode-se detectar nestas convocações uma tentativa prática de conquistar a hegemonia para as classes laborais, uma aliança entre a diminuta (mas concentrada) classe operária e o mar de camponeses existentes na URSS. Foi com base nesta virtude, por exemplo, que na crise revolucionária de 1917, Lenin teve a sensibilidade de lançar a palavra de ordem todo poder aos sovietes, visando à transferência do poder das estruturas carcomidas do governo provisório de Kerensky para as ascendentes estruturas dos conselhos de soldados camponeses e operários (os sovietes). Em variados textos, escritos na condição de chefe de Estado do novo poder soviético, Lenin (1980: 139-160) estimulou o trabalho voluntário dos operários no esforço de construção do socialismo; valorou a capacidade de iniciativa autônoma da juventude (1975); teve uma atitude muito aberta nas discussões sobre a constituição de um novo tipo de família, abjurando a estrutura patriarcal e o moralismo burguês (1980) etc.
Na questão da capacidade de transformação molecular (da iniciativa originada da sociedade civil, do-que-não-é-aparelho-de-Estado) dos distintos modelos societários reside, no mundo contemporâneo, o cerne da possibilidade de hegemonia e superação de um por outro. Esta foi a mais essencial de todas as questões e problemas advindos do modelo societário soviético. Em diapasão coligado, também podemos afirmar que o plano estratégico exarado da revolução permanente desatualizou rapidamente na URSS, face aos desafios do jovem poder soviético: a idéia de que uma seleta vanguarda toma o aparelho de Estado e, pela via de um Estado restrito ao aparelho burocrático-militar, toma medidas de construção do socialismo, entrou em crise no curso da própria Revolução Russa. O socialismo só pode germinar e perdurar se vier de baixo, da iniciativa da sociedade civil.
Dessa maneira, a competição entre o fordismo e o sovietismo deveria ser diferente da competição, havida na Europa, no século XIX, entre americanismo e prussianismo – evidenciada no capítulo anterior quando contrapomos Tocqueville a Renan –, pois dado o grau de racionalização da produção material – seja na forma-mercadoria (Estados Unidos) ou na forma da apropriação socializada do produto (União Soviética) –, e de crescimento espacial das estruturas da sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia), modelos societários como o prussiano, cujas iniciativas e diretivas provinham quase exclusivamente do aparelho de Estado, estavam fadados ao insucesso de longo prazo.
Ainda mais, a questão enunciada no parágrafo anterior é bastante atual e não se perdeu nas brumas do fracasso histórico da experiência russa: precisamente a realidade estrutural da enorme capacidade de iniciativa desatada no mundo contemporâneo pela racionalização da produção e pela ampliação da sociedade civil é o que separa o tipo de revolução passiva ocorrida no seguimento das Revoluções Burguesas, do tipo de revolução Passiva ocorrida no seguimento das Revoluções Proletárias. Na primeira revolução passiva, o aparelho de Estado tinha os principais cordéis (principalmente porque absorvia quase todos os intelectuais); enquanto na segunda, esse aparelho não tinha mais meios de absorver ou controlar todas as iniciativas de uma estrutura civil complexa, fundamentada no trabalho (e no trabalhador) coletivo (portanto, não tinha como criar, cooptar e influenciar no interior de um único aparelho – o Estado stricto sensu – todos os intelectuais).
Algumas das intenções políticas e culturais escritas do “último” Lenin foram importantes no giro estratégico proposto por Gramsci nos Cadernos do Cárcere (alteração da estratégia de guerra de movimento para guerra de posição numa época histórica de revolução passiva). Alterar a estratégia, aliás, foi a grande questão da elaboração intelectual de Gramsci na maturidade. E o débito a Lenin, quanto ao giro estratégico, foi reconhecido por Gramsci: “parece-me que Ilitch [Lênin] havia compreendido a necessidade de uma mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente (...)” (Gramsci, 2000 C7V3: 262).
Mas não só o ocidente estava em jogo no binômio guerra de posição/revolução passiva. Ocidente e oriente, neste caso, compõem uma totalidade, quando postos na perspectiva histórica correta do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, retomada agora num grau maior de aproximação. Em Gramsci (e em Lenin), front ocidental/oriental e Revolução Russa estavam intimamente ligados como faces de uma mesma moeda.
Enganam-se, portanto, aqueles que pensam que o giro estratégico proposto pelos dois – Gramsci e Lenin –, valeria somente para a configuração do ocidente capitalista. No caso da URSS, a partir do advento da NEP – e isso é fundamental –, também estava-se praticando uma guerra de posição. E mais: da capacidade molecular (a iniciativa provinda de baixo, da sociedade civil), desatada no processo da NEP, dependia muito o futuro da Revolução Russa e a capacidade de o sovietismo tornar-se modelo societário internacional/ocidental. Desta maneira, se a experiência soviética estava tendo descaminhos, confrontos no âmbito do partido, etc., isto não era uma questão menor (restrita à economia doméstica dos russos soviéticos), mas tinha uma imediata incidência histórico-universal, pois estava havendo no mundo, objetivamente, uma competição de modelo societário entre o fordismo e o sovietismo, onde a questão do exemplo jogava um papel fundamental.
Gramsci tinha claro o conteúdo universal da Revolução Russa, desde seus primeiros artigos juvenis, e depois da estada na URSS ela se apura, como lemos nesta carta a Togliatti, datada de 1926: “Hoje, isto é, nove anos após Outubro de 1917, não é o fato da tomada do poder pelos bolcheviques que será capaz de revolucionar as massas no Ocidente, posto que se trata de uma situação terminada e que já produziu todos os seus efeitos; hoje, o que tem um efeito ideológico e político é essa convicção (quando ela existe) de que o proletariado, uma vez no poder, pode construir o socialismo” (Gramsci, 1971: 136).
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