A Revolução Russa como Revolução Passiva?


Jaldes Meneses

Seria a Revolução Russa um processo de Revolução Passiva? Entre os principais debates intelectuais na Rússia Soviética na década de 1920 estavam os confrontos de duas teses estratégicas de ritmo de desenvolvimento. Um primeiro grupo, entre os quais se destacava a formulação de Preobrazhenski (1979),  defendia a tese de uma industrialização rápida, na voragem de uma radical “acumulação primitiva do socialismo”. Por seu turno, um segundo grupo, entre os quais se destacava Bukharin (1974), defendia um processo em ritmo mais lento de construção econômica do socialismo, baseado no estímulo à acumulação interna fornecida pela propriedade rural. No final da década a polêmica foi decidida. Stalin, que oscilava entre os dois grupos, a depender a correlação de forças, tomou as rédeas do poder e implantou um regime de bonapartismo (cesarismo) progressivo (Gramsci, 2000 C13: 76-79) que acabou se consolidando como um socialismo de Estado de sociedade civil amorfa e reprodução burocrática total.  

Quando a chapa esquentou, no primeiro plano quinquenal (1928-1932) e na coletivização forçada da agricultura (1929-1931), numa dessas ironias da história, o realismo político de Stalin não contou pruridos. Aproveitou o fulcro das idéias de acumulação intensiva de seus adversários. Cautelosas, as indicações de Gramsci sobre a União Soviética, neste período, após as mesuras de praxe de reconhecer o esforço heróico, são repletas de críticas veladas à estratégia de construção econômica do socialismo levadas adiante pelo grupo de Stalin.

Não se trata de precipitação nem exagero concluir que, de maneira cifrada em virtude da difícil situação de prisioneiro, Gramsci propunha outro caminho à União Soviética. Tema central do outro caminho possível de construção socialismo, a preocupação de Gramsci se voltou para as relações encetadas entre o novo Estado e a hegemonia de classe. Resumidamente, a questão é a seguinte: - o partido da classe operária no poder buscou incorporar o conjunto das demais classes – principalmente os camponeses –, ao novo bloco histórico? Ou prevaleceu uma falsificação do marxismo, na forma disfarçada de uma utopia obreirista de Estado operário “puro”? 

Nos escritos carcerários de Gramsci quando se enuncia “Estado Operário”, na verdade, a referência de fundo é à enganosa autossatisfação de criação de um “Estado Corporativo”. Passando em revista o começo do regime stalinista, observava ele que o novo Estado encontrava-se num estágio muito incipiente, “corporativo”. Ou seja, não absorvia as aspirações das classes aliadas, mas, ao contrário, submetia todas as classes (inclusive a operária, formalmente dirigente) a um estranho regime - ao menos nas formulações clássicas da tradição marxista -, de deificação do Estado. Nos termos de Gramsci (2000 C8: 279-280), tomava corpo um regime "estatólatra". Levando-se em consideração o atraso russo, herança do atrasado Império Czarista, era até razoável que o começo da vida do novo Estado apresentasse desvios. O problema reside em transformar o vício em virtude. Em vez de estimular o desmonte da estatolatria pelo exercício da democracia socialista, o regime de Stalin fortalecia o desvio, através do fortalecimento de um comando burocrático.  

No marco de encruzilhada do fim do longo século XIX e a aurora do curto século XX a Revolução Russa de fevereiro de 1917 foi a última das Revoluções burguesas européias do século XIX. O diferencial heterodoxo, lenineano mas também trotskquiano, foi propor de imediato (em abril) o rumo socialista à revolução. Segundo a visada de ambos, a Rússia podia extrapolar o manual das Revoluções Burguesas adotado pelo programa social-democrata ortodoxo, que estacionava as tarefas da revolução na questão agrária, na questão democrática e na constituição política. Em audácia radical, por caminhos diferentes, Trotsky(1979), muito antes, nos idos do balanço do malogro da Revolução de 1905, e Lenin (1979), às portas da revolução de 1917, desenvolveram, em termos de estratégia política, as teses originais de Marx e Engels (Marx: 1980a: 111-198;1980b: 83-92) sobre as possibilidades de permanência da revolução. Ou seja, a possibilidade de tomar os céus de assalto e transformar a revolução, inicialmente de caráter burguês, em socialista e expandi-la mundo afora.

Quais teriam sido os principais problemas apresentados na estratégia internacional do movimento comunista e na exemplaridade/expansividade (tendo em vista o objetivo de persecução da conquista da hegemonia internacional) da Revolução Socialista Soviética?

Dois processos combinados, internos à União Soviética, são fundamentais: o primeiro Plano Qüinqüenal (1928-1932) e a expropriação forçada da propriedade camponesa privada (1929-1931). Podiam até ser inevitáveis, mas o Plano e a expropriação forçada derruíram as tentativas de estabelecer um sistema de equilíbrio cidade-campo da NEP (1921-1928). Enquanto isso, no front  internacional o VI Congresso da Internacional Comunista (1928) aprova a chamada política do “terceiro período”, de crise geral do capitalismo e consideração da social-democracia como “social-fascismo”. Os três processos, internos (Plano Quinquenal e expropriação camponesa), e externos  (VI Congresso), compõem os vetores de uma estratégia comum. Configurou uma viragem de largo escopo na experiência nacional e internacional anterior, de frente única operária e NEP.

A nova tríade estratégica da liderança comunista – primeiro Plano Quinquenal, expropriação camponesa, VI Congresso –, não seduziu a Gramsci. Pouco antes, já em 1926, no auge da crise de divisão do partido comunista na União Soviética, deputado na Itália fascista e na iminência de ser preso, ele posicionava-se contrário a alinhamentos automáticos frente aos grupos em confronto no principal partido comunista mundial, o único que havia feito a revolução em seu país e de onde emanava uma natural autoridade. Sensível às dificuldades de uma situação internacional complicada, essencialmente defensiva, postulava relações mais fraternas entre os camaradas. Intuía que o regime soviético (naquele preciso momento especialmente em virtude da cisão do grupo dirigente) vinha perdendo potencialidades hegemônicas internacionais. Passada a euforia da saga de tomada e conquista do poder político na Rússia - origem do impulso e influência internacional de expansão da revolução nos primeiros anos -, em virtude da consolidação de um estilo de comando de viés autocrático, as potencialidades hegemônicas da revolução na Europa tendiam a estiolar. 

Antes de tudo, para avançar naquele momento, era fundamental eliminar  o “espírito de cissão” dos dirigentes russos. A síntese das opiniões de Gramsci, na condição de secretário-geral do PCI, é bem expressa numa instrutiva carta-resposta a uma missiva anterior enviada a Palmiro Togliatti (representante do PCI na Executiva da III Internacional Comunista, em Moscou). Corria o ano de 1926: “hoje, nove anos depois de outubro de 1917, não é mais o fato da tomada de poder pelos bolcheviques que pode revolucionar as massas ocidentais, já que ele é dado como algo consumado e já produziu seus efeitos. Hoje é ativa, ideológica e politicamente, a convicção (se existe) de que o proletariado, uma vez tomado o poder, pode construir o socialismo. A autoridade do partido liga-se a esta convicção, que não pode ser inculcada nas grandes massas através de métodos de pedagogia escolástica, mas apenas pedagogia revolucionária, ou seja, apenas pelo fato político de que todo o Partido russo está convencido disso e luta de modo unitário” (Gramsci, 2004: 402). 

Nas querelas nacionais e internacionais do comunismo, o secretário-geral, Stalin desempenhou um papel decisivo. Depois da morte de Lenin (janeiro de 1924). Certamente, pensando na elucidação teórica-política da circunstância inédita de divisão dos comunistas no poder, no papel exercido por Stalin e torcendo pela vigência de uma situação transitória no partido e na sociedade soviética, Gramsci (2000 C13: 76) formulou uma interessante “ampliação” do conceito de cesarismo, bifurcando-o em cesarismo progressivo ou regressivo: “o cesarismo é progressista quando sua intervenção ajuda a força progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodações que limitam a vitória; é regressivo quando sua intervenção ajuda a força regressiva a triunfar, também neste caso com certos compromissos e limitações, os quais, no entanto, têm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. César e Napoleão I são exemplos de cesarismo progressista. Napoleão III e Bismarck, de cesarismo regressivo”.

Assim sendo, embora sem mencioná-lo diretamente, a posição inicial de Gramsci sobre as atitudes de Stalin era de alguma condescendência, como de resto foi de condescendência (ou até de simpatia) o posicionamento em relação às circunstâncias históricas de aparecimento dos cesarismos progressivos em geral no processo das revoluções burguesas. Por isso, não é “forçar a mão” deduzir que, em Gramsci, as circunstâncias de Stalin assemelhavam-se a de um César, um Cromwell, um Napoleão I. Em comum na história, todos eles foram “cesaristas progressivos”. A situação de cesarismo progressivo na União Soviética - aliás, de todo cesarismo –, poderia até ser compreensível no curto prazo, desde que temporário e de onde partiria um novo equilíbrio de forças a longo, ocupando perduravelmente o espaço político. Basta lembrar que as ditaduras no antigo mundo romano eram temporárias. 

Assim, o padrão de lutas no Partido Bolchevique após a morte de Lenin seriam exemplos de cesarismo progressivo. Apesar da proibição formal de facções, três grupos mutantes se engalfinhavam pela maioria no Partido e no Estado, cujas principais lideranças eram Trotsky (“esquerda”), Bukharin (“direita”) e Stalin (“centro”). Simplificadamente, a luta de facções, sempre na presença do “árbitro” cesarista, ocorreu mais ou menos no seguinte padrão: o “centro” se alinhou por algum tempo com a “direita”, visando derrotar a “esquerda”; uma vez a esquerda isolada, o “centro” – cuja oscilação representava interesses acantonados no controle da máquina partidária –, animou-se a isolar a “direita”. Derrotados, enfim,  em processo reativo, os antigos membros da “esquerda” (Trotsky) e da “direita” (Bukharin), e até alguns elementos expurgados do “centro” (Zinoviev, Kamenev), se uniram visando a uma luta heróica e inglória de destronar o “centro”. 

Foram duas as consequências dessas lutas de facções. Em primeiro lugar, a “esquerda” e a “direita” se uniram quando não era mais possível derrotar o antigo “centro”, fortalecido pelo controle da máquina do Estado e do partido. Em segundo, a facção de “esquerda” foi derrotada, mas Stalin aproveitou a seu modo (e com elevadíssimo grau de radicalidade) os princípios de política econômica preconizados no antigo programa da “esquerda” (industrialização intensiva, planejamento central rigoroso, socialização da agricultura, etc.).

Não se deve perder de vista, obviamente, que os três grupos mutantes – “esquerda”, “direita” e “centro” – não constituíam simplesmente camarilhas palacianas saídas de alguma corte absolutista shakespeariana. Mais que facções, representavam dinâmicas profundas de luta política represadas na sociedade. A principal origem do represamento advinha do regime, adotado no X Congresso (1921), de partido único e proibição formal das facções. As intervenções de Lenin no congresso supunham uma medida provisória, mas adquiriu caráter permanente sob Stalin.  

Por isso, a luta política existente na sociedade e nos diversos grupos de interesses migrava para dentro do aparelho partidário, especialmente da direção, que bancava (de maneira engessada) a mímesis de todo o tecido social, passando agudo processo transformações e modernizações. São as circunstâncias dos cesarismos e dos bonapartismos, com a diferença conceitual que cesarismo significa o poder da última palavra no circuito fechado das assembleias legislativas e dos partidos, enquanto bonapartismo significa a ampliação da liderança para a sociedade. 

Talvez seja correto classificar Stalin como um Bonaparte (ou um César) progressista no período que vai de janeiro de 1924 (morte de Lenin) a 1928/1929 (começo da expropriação camponesa). Seria, por assim dizer, a fase cesarista/bonapartista (1924-1928) do secretário-geral, que combinou métodos persuasivos e métodos repressivos no combate às tendências de “direita” e “esquerda”, repressão pontual pela base (junto aos militantes anônimos) e luta interna radicalizada contra os principais adversários no partido. Depois, como os grupos antagônicos foram derrotados e ficou dificílimo a formação de oposição, até camuflada, não houvesse mais a necessidade de um cesarismo que cumprisse o papel de ponto de equilíbrio entre os cristais, inter alia Partido-Estado. O enrijecimento das estruturas políticas – os sovietes e o partido –, capazes de realizar a hegemonia, passou a ser total.

O regime de burocracia deixou de ser parcial, como no capitalismo de Estado em geral e na NEP em particular. Começou a ser total. A tragédia histórica em desenvolvimento, na fase subseqüente ao cesarismo progressivo, era a de que um tipo histórico inédito de revolução modernizadora estava se configurando – uma revolução que assumiu uma perspectiva exponencial saturação das estruturas repressivas do Estado, em abandono total do incentivo às estruturas de hegemonia (a iniciativa social autônoma da nova sociedade civil soviética). 

A tragédia foi chamada, até mesmo por propagandistas, de “revolução pelo alto”. Seria a nova “revolução pelo alto” uma nova forma de revolução passiva de modernização acelerada e forçada? Escreve Deuscher (1970: 266): “em 1929, cinco anos depois de morte de Lênin, a Rússia Soviética aventurou-se à sua segunda revolução, dirigida única e exclusivamente por Stálin. Quanto ao alcance e impacto imediato sobre a vida de cerca de 160 milhões de pessoas, a segunda revolução foi ainda mais ampla e radical do que a primeira. Resultou na rápida industrialização da Rússia; forçou mais de cem milhões de camponeses a abandonarem suas pequenas e primitivas propriedades e fundarem fazendas coletivas; arrancou implacavelmente das mãos do mujique o secular arado de madeira e obrigou-o a manejar um trator moderno; levou dezenas de milhões de analfabetos para a escola e fez com que aprendessem a ler e escrever; espiritualmente desligou a Rússia européia da Europa e colocou a Rússia asiática mais perto da Europa. As recompensas dessa revolução foram espantosas; mas também o foi custo: a perda total por parte de uma geração inteira, de liberdade espiritual e política. É necessário um grande esforço de imaginação para avaliar a magnitude e complexidade dessa transformação social que não tem nenhum precedente histórico”.

Duas intenções interligadas estavam, decerto, contempladas no estudo gramsciano das revoluções passivas, tanto burguesas como nas proletárias. A primeira, referente ao “conteúdo” histórico do processo das revoluções. A segunda, mais específica, referente à “estratégia” correta a ser seguida pelo movimento comunista, em plano mundial, já numa época histórica de revolução passiva, após o fracasso das tentativas de assalto direto ao poder nas revoluções alemãs (1918-1923).

A questão de conteúdo remete ao complicado fato de que se cuidou de submeter, tanto no bonapartismo francês como na  primeira fase do stalinismo russo, o democratismo radical dos sans culottes das ruas parisienses e o poder constituinte dos sovietes russos. Depois, na restauração francesa  e na segunda fase do stalinismo –, o objetivo não era submeter, mas estripar qualquer possibilidade de poder constituinte, absorvendo a esfera de iniciativa dos sujeitos individuais e coletivos da sociedade civil a uma máquina de Estado forte e centralizado pela burocracia. 

O regime soviético já não era dos sovietes, destruídos na capacidade, bastante desenvolvida nos primeiros anos da revolução, de acolhimento de iniciativas moleculares, provindas de uma nascente sociedade civil socialista. No tocante ao caso da Revolução Russa, ocorreu, como surpreendente tragédia, aquilo que Marx (sd: 276), quando passou em revista todo o processo das Revoluções Burguesas na Europa, vaticinou criticando: “todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina [o Estado] ao invés de destroçá-la”.

Marx, é claro, vaticinou a respeito do processo das Revoluções Burguesas, jamais das Revoluções Proletárias. Para ele, o ciclo histórico das Revoluções liberaria, em longo prazo, a sociedade do domínio do Estado. Assim, deformando as esperanças originárias do projeto marxiano, o “socialismo num só país”, empreendido por Stalin, fez-se implantando um regime de “socialismo de Estado”, algo que só pode funcionar como uma contrafação das teorias originais de Marx e Engels.

Os propósitos libertários originais de Marx e Engels compunham o programa do regime soviético. A extinção gradual do Estado foi retomada por Lenin em O Estado e a revolução (1980: 223-305), escrito no calor da preparação da insurreição de Outubro de 1917. Não se faz diletantismo às vésperas da revolução. Evidentemente, mesmo que as condições objetivas não permitissem, ou até fosse impossível extinguir totalmente o Estado, o objetivo da crítica ao Estado deveria permanecer como bússola e horizonte do novo regime. Mesmo que o Estado não fosse extinto, o cerne do regime deveria ser a valorização da iniciativa autônoma das massas. 

Quando se examina de conjunto a experiência soviética, em vez da gradual extinção do Estado, ou o objetivo mais modesto de formação de uma sociedade civil socialista autônoma, aconteceu o inverso, exatamente uma exponencialização radical do poder de Estado. Historicamente, o processo começou com uma antevisão do “perigo de degeneração do partido”, enunciado na fase cesarista progressiva de Stalin (1990: 09-14) – resultando maior controle do partido da parte de seus extratos dirigentes –, depois ampliados e radicalizados na formulação do “recrudescimento da luta de classes sob o socialismo” (Stalin, 1977: 530-545).

Observe-se, pois, esse ponto: os chamamentos, conclamações, políticas, etc., da liderança stalinista, caminhavam no sentido oposto ao desiderato de Marx sobre o autêntico conteúdo das revoluções proletárias – destroçar essa máquina, o Estado. Evidentemente, a crer-se no recrudescimento da luta de classes sob o socialismo, haverá sempre menos possibilidade de ver florescer os aparelhos de hegemonia socialista na sociedade civil; a iniciativa estatal das massas, vinda molecularmente, de baixo, será desestimada, dissuadida e até reprimida.

Mais uma vez, vale lembrar que Gramsci caracterizava o Estado soviético stalinista como uma formação atrasada, de tipo econômico-corporativo, ou seja, o predomínio da tendência estatólatra na direção do Estado podou a sociedade civil (os sovietes) de desenvolver superestruturas complexas, com base na hegemonia (no consenso) e não na pura coerção.

Enfim, a antiga Rússia antes da Revolução era uma sociedade de tipo oriental, cujo predomínio do regime absolutista da autocracia czarista, o mais fechado da Europa, não permitiu o desenvolvimento de estruturas de uma sociedade civil complexa e dinâmica. A autocracia teve rasgos modernizantes – em Pedro, o Grande; Catarina da Rússia, etc. –, mas, jamais democratizantes. Por conta do passivo histórico, Gramsci até admitia, na URSS, durante algum tempo, a vigência de um regime estatólatra, mas advertia: “(...) tal estatolatria não deve ser abandonada a si mesma, não deve, especialmente, tornar-se fanatismo teórico e ser concebida como ‘perpétua’” (Gramsci, 2000 C8: 280).

Os destinos da União Soviética pesaram sobre o movimento comunista no ocidente. O predomínio de um Estado ainda na sua fase econômico-corporativa no primeiro país socialista não constituiu atrativo suficientemente forte para as massas do ocidente optar pelo socialismo – a Revolução Russa perdeu a capacidade hegemônica internacional de seus primeiros anos.

A Revolução Francesa teve algo a ensinar à Revolução Russa? Para Gramsci, sim, e muito. Vimos que o segredo da política jacobina foi a distribuição das terras feudais ao servo da gleba e que essa política não derruiu quando os jacobinos foram apeados do poder, mas seguiu em frente, com os thermidorianos e os adeptos de Napoleão I.

Levando em conta o exemplo da Revolução Francesa, Gramsci perguntou sobre a pertinência hegemônica do processo de socialização abrupta das terras e de industrialização ultraplanificada, forçada e intensiva, e se isto não levaria à dissolução da aliança com os camponeses. Pois bem, a conclusão gramsciana foi a de que as perspectivas de superação da fase econômico-corporativa do Estado soviético não seriam superadas com as novas políticas adotadas, mas, ao contrário, o caráter econômico-corporativo do Estado seria reforçado, visto que a expropriação abrupta dificultava o munjique (o camponês russo pobre, religioso e inculto) de emprestar apoio espontâneo ao Estado soviético.

Criticou-se muito o ritmo lento do desenvolvimento do capitalismo na França (pelo menos em comparação aos Estados Unidos e Inglaterra), seu caráter pequeno-burguês e o papel sobressalente da produção familiar, dos agrupamentos radicais, dos intelectuais, etc. Porém, dever-se-ia indagar: será que este ritmo mais lento do capitalismo francês seria exatamente o segredo da hegemonia burguesa naquele processo histórico? Um fator de estabilidade, ao invés de fator de desagregação? Será que um ritmo mais lento de acumulação camponesa, mercantil e industrial não seria a maneira adequada de construir uma direção política e cultural verdadeiramente hegemônica no processo da Revolução Russa?


Um pequeno intervalo para narrar instrutivo debate entre Trotsky e Krasin, um anônimo delegado, ocorrido no XII Congresso do Partido Bolchevique (1923). Trotsky redigiu e pronunciou o informe econômico, quando expôs da tribuna suas idéias sobre a acumulação primitiva no socialismo, num contexto de examinar as saídas de financiamento da industrialização soviética, haja vista as pequenas possibilidades de atrair crédito externo. Em seguida, Krasin, velho camarada de Trotsky lhe dirige a palavra: “- o capitalismo primitivo [a acumulação primitiva] não só pagava mal aos trabalhadores ou confiava na ‘abstinência’ do empresário para promover a acumulação. Explorava colônias, ‘pilhava continentes inteiros’, destruiu os pequenos proprietários rurais da Inglaterra, arruinou os tecelões domésticos da Índia e sobre seus ossos, que ‘embranqueciam as planícies da Índia’ elevou-se a moderna indústria têxtil. Havia Trotsky examinado a conclusão lógica da analogia?” Krasin havia feito a pergunta sem intenção hostil. “Quando ele falou do saque ao campesinato e dos ‘ossos brancos’ dos tecelões domésticos da Índia, Trotsky levantou-se para protestar, dizendo que ‘não havia proposto nada daquilo’”. Era verdade. Mas como seria compreendido tudo aquilo? Arremata Deustcher (1984: 115-116): "Era verdade, ainda assim, a lógica de sua atitude não levava ao ‘saque do campesinato’? Que Trotsky se tivesse levantado para negá-lo indica que sentia formar-se sobre sua cabeça uma nuvem de desconfiança, ainda não maior do que a mão de um homem”.

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