Acordo com o “mercado" e “giro” de “centro-esquerda": mais uma armadilha do “Plano B"


Jaldes Meneses 

O cientista político Mathias Alencastro pensa grande. Em entrevista ao jornalista Luis Nassif, a guisa de contestar alguns argumentos do nosso artigo "Esquerda de Verdade e Armadilhas do “Plano B”, joga na mesa a solução do problema da dificílima conjuntura brasileira. Como se não houvesse relhos, violência e terror político, o caminho das pedras parece relativamente fácil. (https://jornalggn.com.br/noticia/se-esquerda-nao-correr-2º-turno-se-dara-entre-direita-e-extrema-direita-alerta-analista)  

Alencastro afirma peremptoriamente: precisamos nos reaproximar do mercado. Para ele, o PT nos tempos recentes, após o golpe, se afastou muito do mercado. Neste movimento de reaproximação, o partido deve operar um “giro” – o mais urgentemente possível. Deve abandonar a posição de “esquerda” no espectro político, antes que seja tarde e o segundo turno das eleições presidenciais de 2018 seja inevitavelmente disputado entre a “direita” e o “centro-direita”. 

Em qual país vive o entrevistado de Nassif? Acaso pretende desarquivar a “Carta aos Brasileiros” de 2002 para assinatura entre as partes? Não resolve apenas falar de “mercado” em abstrato. No Brasil, mercado tem nome certo e domicílio conhecido: trata-se das classes dominantes, da burguesia brasileira. Portanto, a categoria mercado exibida no discurso de Alencastro não passa de uma interpelação genérica. É preciso abordar a questão detectando as mediações e determinações brasileiras do mercado tal como ele é. Apenas enunciar a palavra-shazam! – mercado –, vem a ser uma forma acomodada de evitar dar os nomes aos bois  e não permitir descer a análise até a ação concreta das classes sociais. Certamente por isso, talvez involuntariamente, a análise densa do conteúdo do golpe de 2016 não comparece na grade analítica do intelectual. 

Assim, antes de tudo, antes do papel das individualidades e dos aparelhos privados de hegemonia, de Michel Temer, de Eduardo Cunha, de Romero Jucá, do MBL, da Rede Globo etc., o golpe impeachment foi um golpe de classe perpetrado pela burguesia brasileira. Sinteticamente, o golpe só aconteceu porque foi a solução que unificou a burguesia na crise político-econômica do segundo governo Dilma. O golpe tinha uma plataforma, executada por Temer e seus asseclas, a superexploração do trabalho (reforma trabalhista e terceirização), a reforma do Estado (EC-95 de teto de gastos e privatizações) e a instauração de uma semidemocracia ou democradura (militarização do Estado, repressão aos movimentos sociais e à esquerda, Lava Jato seletiva, etc.). Não fomos nós, mas as elites dominantes que romperam o pacto político da constituição de 1988. 

O grande objetivo dos golpistas foi implantar uma “nova ordem” regressiva no Brasil. Neste sentido, muitos passos foram dados, mas a “nova ordem” ainda não está totalmente consolidada. Processos históricos tormentosos são abertos e muitas vezes costumam ter desfechos inesperados.

Os golpes brancos parlamentares - para fazer uso da excelente designação da revista alemã Der Spiegel sobre os recentes acontecimentos brasileiros - são mais complexos que os golpes perpetrados por guardas pretorianas, de que a história do século XX brasileiro e latino-americano foi pródiga. Todo golpe – inclusive o de Temer – trata-se de um ato de violência, no sentido de que, invariavelmente, é sempre uma ação abrupta de corte e ruptura da ordem

Todavia, já houve tempo suficiente de aprender que o golpe do impeachment é processual e continuado. O novo capítulo reside na possível prisão de Lula. Logo em seguida, a conspiração golpista articula a interdição do registro da candidatura-Lula no TSE. Mas prender e cassar já não basta. Pretende-se culminar tudo com o cerceamento ilegal do direito político básico de Lula falar ao povo sinalizando qual o novo caminho a ser seguido. Portanto, é na árdua batalha de impedir a prisão de Lula, e também de defesa de sua candidatura, que devemos centrar todos os esforços de mobilização, até o desfecho das possibilidades.

Por tudo isso, as teses de “Plano B” - o “giro” de centro-esquerda em direção ao “mercado” pode ser considerado uma variante da tese - são, para dizer o mínimo, extemporâneas. A candidatura de Lula, a preferida dos brasileiros em todas as simulações de primeiro e segundo turno, deve seguir em frente, contra todos os empecilhos. Fazer a rendição antes de travar a luta teria o significado de uma catástrofe.

O raciocínio de Alencastro pode ser traduzido de outra embocadura: como é impossível, na visão do entrevistado, ganhar eleição no Brasil com um programa de esquerda, sigamos a linha de menor resistência e adotemos uma proposta de “centro-esquerda”: nos “reaproximarmos" do grande capital no intuito de juntar "os velhos caquinhos” repaginados de um improvável “giro”. Nosso pensamento vai em direção contrária, pois assim operando, em vez de alcançar a vitória, pavimentamos o mais curto caminho da derrota. 

Dramatizando o argumento pelo lado do capital, dados os movimentos especulativos do mercado/capital financeiro no segundo governo Dilma, mas especialmente o comportamento eufórico na crise do Impeachment (as cotações em bolsa subiam na antevisão da queda do governo), a preço da cotação de hoje, o tal de “mercado" não quer saber de conciliação com o PT. Almeja a rendição. Ou quem sabe a morte ou coisa parecida?

Neste ínterim, vale esclarecer que o gume da critica não se dirige abstratamente à categoria “mercado" (na medição brasileira, os governos do PT, por exemplo, sempre ativaram o mercado interno de consumo de massas, nem jamais tiveram alergia do investimento em bolsas). Mas a uma de suas formas particulares, o mercado financeiro especulativo – providencialmente secundarizado na entrevista de Alencastro –, e que, embora o capital fictício seja uma forma já da gênese do capitalismo, hoje subjuga as demais formas do capital.


O século dobrou a esquina. Realmente, no caso da crítica de fundamento do capital financeiro, o divisor de águas é programático. A esquerda do século XXI precisa dar um adeus às ilusões. Não deve abrir mão, aqui e alhures, da crítica à financeirização da riqueza e da avassaladora hegemonia societária do financismo e do rentismo. Por demorado, não cabe examinar em detalhe neste artigo, mas cabe também abandonar as ilusões de certa esquerda nacionalista latino-americana de suturar artificialmente “capital produtivo” e “improdutivo" como duas esferas bem delimitadas. O amálgama das duas esferas já foi demonstrado no começo do século XX pelo clássico de Lenin, que nas pegadas de Hilferding, já tematizava a fusão dos capitais comercial e industrial no capital financeiro e a hegemonia da oligarquia financeira. Faltou a Lenin, no entanto, prestar mais atenção ao papel do Estado e do Banco Central na atuação das contratendências da crise. Por isso, ele falou, erroneamente, do imperialismo como era do capitalismo moribundo e putrefato. Muitas dessas insuficiências - que Lenin já detectava autocriticamente nos últimos dias de vida - rebateram nos muitos equívocos de análise do capitalismo pelo movimento comunista internacional na década de 1920. O capital imperialista é muito mais maleável e mutante. Assim, se talvez o título do excelente livro de Ladislau Dowbor, “A era do capital improdutivo”, ao contrário do pensamento do autor, remeta a fenômenos mais antigos (como fenômeno universal, a era completou um século), o subtítulo é preciso em denunciar, não precisamente a “nova”, mas o ethos da "arquitetura do poder” mundial, expresso na dominação financeira, no sequestro da democracia e na destruição do planeta.

Enfim, malgrado óbvias diferenças de formação social, circunstâncias localizadas, e até mesmo de diferenças de compreensão política, há um traço de identidade entre o que a esquerda deve propor no Brasil e Jeremy Corbyn no Reino Unido, Jean-Luc Mélenchon na França e Bernie Sanders nos Estados Unidos. Reparem: nenhum dos três políticos citados é de “extrema-esquerda”. A pergunta deveria ser outra: por que criticar o capital financeiro alhures até passa por charmoso, enquanto no Brasil é ser de “extrema-esquerda” hard e não herbívora? Não seria por quê uma parte da esquerda se acomodou? 



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