Museu Nacional: a confluência das duas tragédias do neoliberalismo


Jaldes Meneses

O incêndio do Museu Nacional tem o significado da confluência de duas tragédias articuladas entre conjuntura e estrutura. Antes de tudo encena a primeira grande tragédia da Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos). Depois, escancara abertamente a falência do projeto de Estado Neoliberal no Brasil, que vem de antes do governo Temer - começou no governo Collor de Melo e ganhou a configuração sistemática de um bloco no poder no reinado de FHC. Rigorosamente, nem Lula nem Dilma romperam com o bloco no poder neoliberal. Atuaram, com inegável êxito, pelas estreitas margens permitidas a um país dependente, operando uma política independente de relações internacionais, e conduzindo um processo de melhoria das condições de vida de centena de milhões pobres e remediados.

Não se ganha eleições no Brasil, e certamente em nenhum lugar do mundo, defendendo abertamente as diretrizes do neoliberalismo. Por isso, aconteceu o golpe parlamentar do Impeachment de Dilma - cuja bíblia são as diretrizes do programa “A ponte para o futuro”. O golpe exponenciou radicalmente o projeto de Estado Neoliberal. Deste então, o Brasil - parafraseando Naomi Klein - passou a viver em “Estado de Choque”, em um regime que seria mais bem definido como uma semidemocracia que, caso não seja derrotado, deve celeremente se encaminhar na direção de uma semiditadura.

Tornou-se lugar comum afirmar que o incêndio do Museu Nacional era uma “tragédia anunciada”. Na tragédia grega, o leitor tem consciência do destino irrefreável dos personagens, traçado que foi anteriormente pelos deuses. Sabemos que o personagem caminha para o cadafalso e nada pode evitar o desenlace do destino. Para mim, embora o fogo seja uma força indomável da natureza, a tragédia do Museu Nacional contém um misto de drama moderno. Jogado no mundo, os personagens do romance moderno, sem dúvida, estão atados às determinações sociais. No entanto, felizmente, essas determinações não são divinas nem naturais. A partir dos constrangimentos e determinismos socialmente herdados, abre-se ao personagem um processo no qual são feitas as escolhas e as decisões são tomadas.

Portanto, o Estado Neoliberal não se trata de uma força da natureza, mas uma criação humana. Por isso, é incorreto afirmar que o “Estado não dá importância à cultura, à história, à memória e o patrimônio”.

Ora, Qual Estado, cara pálida? Todo e qualquer Estado ou o Estado Neoliberal?

Basta lembrar que o Museu Nacional é uma instituição do Estado, criada antes mesmo da existência do Estado nacional, em 1818. Em 1946 foi incorporada à antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), visando generosamente articular patrimônio histórico, antropológico e pesquisa. Pelo que consta, a instituição funcionou relativamente bem, certamente com problemas, até a década de 1980. Observem, as primeiras reportagens, seguidamente repetidas, dando conta da situação falimentar do Museu surgem a partir dos anos 1990. Coincidem precisamente com a periodização do neoliberalismo brasileiro.

Apresenta-se, neste ínterim, um autêntico Segredo de Polichinelo: assim como inexiste lugar para o povo, para o trabalhador, inexiste lugar para a cultura pública em um Estado Neoliberal. Como financiar a cultura e as Universidades, se o objetivo do Estado Neoliberal é dispor o orçamento público ao deleite de rentistas e financistas (em linguagem contábil: o déficit primário de 2017 foi de 2% do PIB, ao passo que o déficit nominal, incluídos os custos da dívida, chegou a 7,8% do PIB)?

Não por acaso, o presidente Temer (covardemente ainda não apareceu em público para se pronunciar sobre a tragédia), em evidente jogada diversionista, mandou da toca o recado que pretende montar um “pool” de grandes empresas e bancos visando subsidiar a reconstrução do prédio do Museu. Trata-se de o governo se eximindo de suas responsabilidades públicas.

De certa maneira, as labaredas que arderam no Museu Nacional anunciam um epitáfio do Brasil.

Quem leu os românticos conhece a ideia de decadência e a insistência na imagem das ruínas em Roma e Alexandria como metáfora da destruição de uma civilização ou de uma ordem social. Assim pensei, assistindo impotente, a imagem de incêndio do Museu Nacional. Aquele incêndio foi o epitáfio do Brasil. Brasileiramente trágico.


Incêndio do prédio da Une em 1964, incêndio da Faculdade Maria Antônia em 1968, incêndio do Museu Nacional em 2018. Toda decadência tem o incêndio que transforma a história em ruínas. Aqui, no Brasil, a senha, escritura premonitória do mal, foi enunciada por aquele senhor das trevas, feito um profeta de mau agouro, um corvo de Poe ou uma das bruxas de Shakespeare em Macbeth; cantou a fátua semana passada na tribuna apropriada do Jornal Nacional- “deixem os historiadores prá lá”. Estou taciturno, mas nutro grandes esperanças: que a dialética da Coruja de Minerva venha nos reconstituir no futuro a glória.

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