Será a pandemia o penúltimo ciclo da insanidade?

Jaldes Meneses
 “Virá um dia a Guerra Dória, e com ela a Peste”.
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso

“Thousands were watching, no one saw a thing”.
Bob Dylan, Murder Most Foul 


(Trechos)

Acaso sobrevivente na roleta da pandemia e da tripla crise do pandemônio (sanitária, geopolítica e econômica), o mundo estará certamente exausto e caindo pelas tabelas, mas, das duas uma, propenso a repetir ou a testar novidades, quando se reabrirem - sabe-se a que prazo - as portas da quarentena? É a pergunta agônica que todos se fazem.

“Olhar nos olhos da tragédia é fazer com que ela seja dominada”, refletiu o teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho, o grande Vianinha, em 1974. Às vésperas do cataclisma pandêmico, havia, em determinados seres humanos de determinadas classes sociais privilegiadas, a aparência de uma individualidade de felicidade estandardizada. Pois sim, a novidade de uma tragédia aparentemente não anunciada e incerta (o vírus chegou! o vírus chegou!) bateu a porta da casa sem pedir licença. Um dos segmentos mais assustados é a minoria populacional, entre decadentes, conservadores, reacionários, alternativos e afluentes, designada de classe média. São centenas de milhões de indivíduos sociais nos cinco continentes, especialmente neste Brasil dos pequenos confortos iludidos do complexo de vira-latas, nos Estados Unidos da “America First” trumpiana e na orgulhosa Europa, cosmopolita no projeto da União Europeia, talhados pelo medo seguro e controlado de imaginárias caravanas de pobres, de imigrantes hispânicos, do Magreb francês ou da África central. A pandemia é profundamente desigual, nada isonômica. A periferia insalubre, os pobres, os negros, as mulheres, os idosos, os doentes, como sempre, perderão mais na contabilidade de vidas da pandemia. A tempestade é comum, mas os botes de sobrevivência liberados ao mar são de calado profundamente desigual. Para uns, os trilhões de dólares jogados de helicóptero na recompra de títulos podres; para as maiorias, a fila do abono emergencial. Dá-se o nome dessa abissal distância de tratamento o pomposo título de “políticas anticíclicas” (a questão será abordada lá na frente). 

Lembra-se de Margaret Thatcher? “Mas o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos e famílias”. Com o tempo, nos transformaram e nos transformamos nessa “outra coisa”. A frase de Thatcher, na tênue fronteira entre neoliberalismo e  anarcocapitalismo é perfeita como explicitação ideológica da origem filosófica do “indivíduo-mônada. Refiro-me a categoria de Marx em Sobre a questão judaica (2010) para descrever, no estágio histórico da aurora da civilização burguesa, a separação radical que houve entre o lócus por excelência do indivíduo - a “sociedade civil-burguesa” - e o Estado político. Sucede, portanto, que o sujeito (o indivíduo-mônada) não se reconhece como cidadão da instância política (o Estado), gerando uma “alienação política”. Rememorar essa conhecidíssima tópica da filosofia política pode ser útil no entendimento do que acontece.

A letra fria dos conceitos deve levar ao campo de testes do ser social “aí”. Uma boa descrição da exacerbação contemporânea, real e não livresca, do ser social “indivíduo-mônada” é a metáfora da Matrix (a franquia de filmes e outros produtos das irmãs Lilly e Lana Wachowski), ou seja, uma realidade contraposta, paralela e simulada, à existência física e social. De fato, a Matrix significa a ilusão de sutura radical entre indivíduo e sociedade, em si uma impossibilidade social. Entretanto, recorrer à Matrix faz todo o sentido heurístico na descrição da radicalização do sonho utópico anarcocapitalista de total ausência de um pano de fundo de sociedade na constituição do indivíduo. O anarcocapitalismo só pode prevalecer como ideologia através da ativa presença cotidiana da irrealidade no processo de socialização.

Que tipo de experiência esses homens e mulheres sem-experiência estão vivendo na pandemia? Para muitos, o contato com a experiência se resume a um exterior encenado, uma espécie de Show de Truman (filme dirigido por Peter Weir sobre um reality show em grau máximo de alienação, o prazer-voyeur de assistir uma pessoa que não sabe que sua vida de palhaçadas é filmada para a diversão dos espectadores). Resultado: quando show fica chato e abusa da paciência, de imediato a atenção vira para outra lacração. Flexionando a frase de Margaret Thatcher, é possível, ironicamente, dizer: “não existem indivíduos, homens nem mulheres, apenas vírus – algorítmicos”.

A boutade de comparar indivíduos e vírus é boa, mas cabe uma cautela na analogia: a categoria indivíduo, como as demais categorias da sociedade - inclusive o poderoso e naturalizado "Capital" -, são criações sócio-históricas, enquanto o vírus é um ser vivo ontologicamente natural. Fazer indivíduos de carne, osso e identidade virar metáfora de vírus só ocorre como perda. O vírus é a realidade objetiva independente de nós, como rezam os manuais de materialismo histórico; o vírus é o “real” lacaniano.  O vírus não tem intenção de matar ninguém, nem de se reproduzir… apenas se reproduz e se espalha em ambiente propício, neste caso a ecologia do capitalismo predatório do século XXI. O indiferente vírus biológico, É. Por sua vez, indivíduo e capital – cujo mínimo simbólico é nivelado a um número em forma de estatística e dinheiro – operam, no registro ideológico anarcocapitalista, como mimeses anti-humanista de um vírus.

A literatura voltou com a pandemia, o que significa que ainda há esperança. Da varanda ao celular, novos Petracas, Boccaccios, Camus - escritores que escreveram na peste ou sobre a peste - estão a pleno vapor, batucando registros endereçados ao futuro. Falando em mimeses, nos tempos idos de Homero (Grécia antiga), Virgílio (Roma), e depois Camões (Portugal), no exato ponto que o narrador da epopeia recepciona fielmente a tradição popular e se prende menos aos dilemas existenciais do herói, era possível conceber a existência de uma experiência heroica catártica. Nos dias de hoje, talvez seja mais fidedigno afirmar que o indivíduo-mônada (não me refiro a linha de frente de combate à doença nem às estratégias de sobrevivência dos pobres) esteja vivendo na pandemia a liberação das energias de uma experiência ética e estética de epopeia minimalista. O filósofo Adorno esculpiu uma categoria de aproximação dessa experiência: epopeia negativa.

Uma boa parte da literatura moderna do século XX operou no registro da epopeia negativa. Um autor de transição é Fernando Pessoa, em seu poema Mensagem (2006). O grande poeta esculpiu em Mensagem uma tentativa de ode, antiépica, decerto, mas ainda no registro nacional. Pessoa tinha a ambição de ser o Camões de seu tempo, mas pensando Portugal no contrapelo e não no fluxo da épica tradicional. Em Os lusíadas (2008), Camões cantava a glória “das armas e dos barões assinalados...” na aventura das “grandes navegações”, ou melhor, a expansão colonial marítima em direção às “Índias” pelo “mar oceano” (o Atlântico). Tratava-se de uma evidente experiência épica. Por sua vez, nos tempos modernos (poema publicado em 1934), Fernando Pessoa cantou em Mensagem (2006) a nostalgia de desaparecimento dos tempos da glória lusitana. Assim, na condição de poeta-pensador, Pessoa criou um tipo de ode antiépica - e não uma epopeia negativa -, uma figuração estética que, apesar da nostalgia do passado perdido, ainda transita, como espectro ou resíduo moderno, no campo positivo da épica. (“Ah, quanto mais ao povo a alma falta/mais  a minha alta Atlântica se exalta”). Definitivamente, Pessoa não cabe na camisa de força do “indivíduo-mônada”. Por outro lado, se é possível alcançar o nuance, é adequada a impressão de um “cidadão português” repleto de heterônimos, mas pisando no chão firme de um ortônimo torto sebastianado, pensando a decadência de uma nação que poderia ter sido e não foi um grande império.  

Um épico deteriorado e com defeito de fabricação, nos termos de Adorno, que “acaba por suprimir dialeticamente a categoria épica fundamental da objetividade.” Paradoxalmente, a experiência, coletiva e solitária, de cada um na pandemia – ou em comum com consortes familiares -, abrigados em suas trincheiras privadas conectadas em rede seria uma pausa, uma suspensão, no modelo de vida regido pela epopeia negativa. Camus chamou em A peste essa experiência de “exílio em casa”. As grandes tragédias gregas, os dramas abissais de guerra e paz, os apocalipses bíblicos, as guerras quentes, os genocídios, as guerras químicas, os holocaustos, as pandemias, acontecem todo santo dia. Mas tais catástrofes são acantonadas, terceirizadas e escondidas na periferia do mundo, distante de casa. Cantou Cassiano Ricardo em um belo e desconhecido poema, Os sobreviventes (1971): “Na sobremesa/os convivas/alheios à fome/de quem ficou/sob a mesa.”

Porém, de repente, chegou a surpresa de viver a quarentena da peste (verdadeira e falsa surpresa, pois os cientistas já vinham há décadas alertando a passagem de epidemias geograficamente restritas a uma pandemia de abrangência universal). Viver o estranhamento - para os padrões de um pequeno-burguês - do confinamento em pequeno grupo e inesperadamente participar do lúdico prazer de contar, cozinhar, jogar cartas, ler, estudar, tocar um instrumento, dormir e acordar. Esse clima de serão contém reminiscências da longínqua experiência de Boccaccio em 1348, narrada em Decamerão: sete mulheres e três homens jovens se refugiam em um recanto campestre nas vizinhanças de Florença para fugir do vírus da Peste Negra (febre bubônica transmitida pelos ratos) - encontro inusitado devido os padrões religiosos da época - e começam a contar aventuras maliciosas e picarescas. Assim foi concebido um dos clássicos inaugurais da literatura italiana. Em vez de passar a quarentena em grupo é também possível a experiência da solidão, jogar um metafísico jogo de xadrez na vã tentativa racional de iludir a iniludível - a morte -, a exemplo do enredo de O sétimo selo, filme essencial na filmografia existencialista de Ingmar Bergman. O título invoca, não por acaso, apocalipse e revelação no cruzamento entre peste e morte. O filme conta a história de um cavaleiro medieval (Max von Sydow, no papel de Antonius Block) que retorna a sua aldeia sueca, em pleno holocausto da Peste Negra, após combater nas Cruzadas. A morte, enfim, como sempre, ganhou o jogo de xadrez, mas Antonius Block adiou o desfecho. (Gilberto Gil, Não tenho medo da morte: “A morte já é depois/já não haverá ninguém/como eu aqui agora/pensando sobre o além/já não haverá além).”

Incomensuravelmente, a experiência da peste, vivida individualmente ou em pequenos grupos de afeto, carrega a dialética de um intimismo não solitário e no limiar do solidário. O inferno não são os outros, pois sempre se depende do reconhecimento dos outros, mesmo na forma mercantil (o gari, o entregador de aplicativo, o porteiro, os médicos, os enfermeiros, etc.), para sobreviver na temporada de recolhimento. A peste é a impossibilidade do solipsismo, mas, por outro lado, um tipo de vivência da intimidade. Trata-se de uma experiência antiépica. Parafraseando Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, “tudo que é sólido desmancha literalmente no ar” e “nas crises evidencia-se uma epidemia social”. Neste instante, sob os miasmas invasivos da peste do Novo Coronavírus-SARS-CoV-2-Covid-19, são revirados de alto a baixo os alicerces ontológicos da cotidianidade.

A quarentena vem a ser uma radical parada geral, um circuit breaker prolongado, no caso da pandemia elevada a uma escala de explosão atômica (Chico Buarque, Rosa-dos-Ventos: "Numa enchente amazônica/Numa explosão atlântica/E a multidão vendo em pânico/E a multidão vendo atônita/Ainda que tarde/O seu despertar") . Tudo isso resulta uma extravagância, uma inédita greve geral mitológica, soreliana. Descreveu-se a potência da quarentena, falta o Deus ex-machina do circuit breaker global. Ou seja, indagar quem tem a prerrogativa de poder de decretar a quarentena na pandemia. Quem mobiliza o aparato organizador e repressor de um lockdown? Como? Com quais instrumentos? A ciência, a técnica, as políticas sanitárias? Esses são meios indispensáveis. O poder tem centro e adquire forma vertical quando se transforma em Estado soberano.

Assim, o fato de as quarentenas serem decididas e comandadas mundo afora sem exceção pelo Estado, certamente pela urgência do problema e não de livre e espontânea vontade, é uma das chaves na compreensão dos destinos da tragédia, antes, agora e depois. É possível desenvolver um índice repleto de indicadores numéricos e qualitativos, uma taxa de sucesso estatal com base no desempenho na pandemia. Certamente China, Cuba e mais uns países asiáticos (na América do Sul, por enquanto, Argentina e Venezuela) ocupam o primeiro lugar. Brasil, último da fila. (O nuance em contrário confucionista do governo Bolsonaro, representativo de e setores majoritários da lumpemburguesia e da classe média brasileira - a guerra de todos contra todos no escuro -, é uma excentricidade. Sintoma da bizarra conjuntura brasileira de crise orgânica em país dependente. O foco na complexidade brasileira será assunto de um segundo artigo).

 A metáfora política em voga de comparar o combate da pandemia a uma guerra só faz sentido se houver o Estado na jogada. Inexiste novidade em dizer que toda ação estatal visa estabelecer a ordem, através da coerção e do consenso, interferindo nas realidades estratégicas das relações sociais de força entre Sociedade Civil e Estado (Sociedade Política). Nesta intervenção, trata-se de estabelecer uma ordem na pandemia, regular a realidade social que todo mundo é arrastado a viver, na compleição do corpo e na condição social de cada um, as experiências de insegurança e indeterminação rumo a um hipotético cenário de anomia. Só a ação emergencial do Estado reduz, até o limite do possível da regulação política, os danos do caos, na propagação incandescente do vírus e na minoração dos efeitos da volatilidade dos mercados financeiros.

Na verdade, são duas realidades e um “real” cru: a pandemia, o pandemônio e o vírus. Assim, a experiência comum de viver uma pandemia - a propagação de um vírus infecioso em tecido social propício (o capitalismo neoliberal, mercadista e financeiro) nunca é autoexplicativa. Coexistem e se retroalimentam o vírus, a pandemia e o pandemônio (inspirada palavra-síntese de explicação da crise, que depois se generalizou, da lavra do cientista Miguel Nicolelis). Por sua vez, o pandemônio atende à síntese de três crises entrelaçadas, a crise sanitária (Covid-19), a crise geopolítica (disputa sino-americana saiu da caixinha) e a crise dos mercados financeiros (queda dos ativos financeiros e o prenúncio de mau agouro de uma grande depressão iminente, talvez a mais aguda de todos os tempos de história do capitalismo). Em meio a tudo isso e por tudo isso, uma crise da racionalidade neoliberal, uma crise política de alternativas e, consequentemente, uma crise de legitimação do Estado. O pandemônio se ergue nos ombros da pandemia, desorganizando a reificada casa comum - a bolha do capitalismo de consumo conspícuo.


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