O século da pandemia esquecida


Jaldes Meneses

“Os humanos são perigos biológicos. As máquinas, não”
Anuja Sonalker, CEO da Steer Tech

“Não sois máquina! Homens é que sois”
Charles Chaplin, artista


O brilhante historiador socialdemocrata Tony Judt escreveu que o século XX é um “século esquecido” [i]. Paradoxalmente, a dialética de esquecimento e memória recalca tragédias e expõe acontecimentos reconfortantes. Em 1939 o revolucionário e escritor Victor Serge escreveu no exílio belga, fugido da União Soviética, o seu mais notável romance, S’il est minuit das siècle (Meia noite no século). No livro, um membro da velha guarda bolchevique exilado, Elkine pronuncia uma frase que se tornou famosa depois de reduzida a uma elipse. O diálogo no romance: “- O que há, agora, na nossa cabeça é um sol de meia-noite. Glacial. O que fazer se é meia noite no século? - Somos os homens da meia-noite, diz Rodion [a Elkine], mas com uma espécie de alegria” [ii].

“Bateu meia noite no século XX” – eis a elipse/síntese do diálogo de significado trágico. Em 1939 os nazistas ocuparam a Polônia. Ingleses e franceses, em resposta, declararam oficialmente a guerra. No ano seguinte, culminando a vitória do blitzkrieg alemão na frente ocidental e vergonha nacional francesa, Hitler cruzou de automóvel o centro de Paris, o Arco do Triunfo e demais monumentos históricos da cidade. Os artistas funcionam como antenas do mundo. Um exemplo entre outros, Stefan Zweig, autor de Brasil, país do futuro, escritor austríaco e judeu, exilado em Petrópolis. Bateu um banzo na serra com as vitórias do nazismo em 1942, suicidou-se com a mulher Lotte, desenganado com o futuro. A luz do sol só recomeçou a bater depois de algum tempo, quando a União Soviética expulsou os nazistas de Stalingrado, em dois de fevereiro de 1943. A frente ocidental da guerra acabou em 8/5/1945, quando da rendição incondicional das tropas alemãs aos aliados – a rendição incondicional dos nazistas era uma cláusula pétrea de Stalin ante as vacilações de americanos e ingleses. O clima do mundo havia mudado. No mesmo ano, cantava Drummond em Carta a Stalingrado: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais./Os telegramas de Moscou repetem Homero./Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo/que nós, na escuridão, ignorávamos” [iii].

Foi um século rápido e difícil dentro da noite veloz, que alternou grandes esperanças e amargas decepções. Eric J. Hobsbawm, erudito historiador, escreveu que o século XX (o “breve século XX”) se encerrou em 1991. Um século espremido entre os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – de fato, uma “guerra de trinta anos” de 1914 até 1945 ou chamado por outros de “período entreguerras” - e a autodissolução sem tiros, também incondicional, da União Soviética (o primeiro e inédito Império autodissolvido da história) [iv].  Mas o historiador foi cauteloso em decretar ato contínuo a autodissolução da URSS o nascimento do novo século. Esperou dez anos (seriam esses um “tempo de espera” ancorado nos anos 1990?), enfim anunciando o novo século no ataque da Al-Qaeda às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001: “(…) Uma drástica e inegável cesura na história do mundo. Provavelmente nenhum outro acontecimento inesperado da história do mundo tenha sido sentido diretamente por maior número de seres humanos” [v].

A periodização do ilustre historiador britânico, que privilegia a chave narrativa na escala do Événement em vez da Longue Durée (a questão, axial na relação entre tempo e temporalidade, reaparecerá na parte final do artigo), é cirúrgica no estudo dos Estados Unidos, da totalidade da Europa e, até certo ponto, das grandes economias latino-americanas (Brasil, Argentina e México). Mas é defeituosa em escala global. É impossível esquecer que o fim da “era de ouro” dos Estados de Bem-Estar Social na Europa Ocidental e das experiências de nacional-desenvolvimentismo latino-americano coincide com um “deslocamento dramático da riqueza relativa para as regiões mais densamente povoadas da terra. A China tem sozinha uma população maior que a América do Norte, a Europa e a Rússia juntas” [vi]. Ademais, a guerra fria até a autodissolução da URSS (1991) foi quente na periferia, cujo sacrifício não constou apenas das históricas veias abertas de exportação de excedentes, através dos mecanismos de transferência de valor desnudados pela teoria crítica da dependência. A economia é uma das faces da moeda. Na outra face da dialética, estimam-se em 57 milhões as carnes dos mortos na periferia do sistema, assim contribuindo para manter a pax (concertada pelos dois emergentes, Estados Unidos e URSS, assinada pelo decadente Reino Unido, na Conferência de Yalta em fevereiro 1945) nas zonas de partilha e influência da guerra fria.

Interessante, as especulações, pesquisas e periodizações macro históricas de Hobsbawm - e também de Tony Judt -, passam ao largo de citar, ou até em mostrar na iconografia de seus livros, a Gripe Espanhola (1918-1920). Como sabido, a “espanhola” não foi uma “gripezinha”, mas uma avassaladora pandemia. Infectou, conforme medições estatísticas incertas, até 500 milhões e matou entre 30, 50 ou 100 milhões de pessoas, em todos os continentes (no Brasil, ceifou pelo menos 30 mil pessoas). Ambos os extraordinários historiadores esqueceram o Événement da gripe e não foi por imperícia. De fato, até recentemente, a “espanhola” era a “pandemia esquecida” [vii]. A invizibilização da “espanhola” anela praticamente toda a historiografia ocidental recente; noves fora, evidentemente, os estudos monográficos de áreas que pesquisam na fronteira de história, natureza e medicina social, mas de baixa repercussão fora do paradigma especializado. Só voltou a despertar interesse, em virtude do terror despertado das notícias da gripe aviária e outras pandemias, nos anos 1990 e 2000. Na verdade, retomando o belo conceito de Lukács na Estetica [viii], houve, no século XX, da parte da história, das ciências sociais e da literatura, um movimento de antropoformização das pandemias, que passou a ser uma das metáforas favoritas de nomeação do conceito de crise, seja nas humanidades [ix] ou na literatura [x]. Deve-se observar, enfim, que os escritos de Hobsbawm e Tony Judt, quando o objeto é o século XX, flagram dois historiadores “escrevendo a história do próprio tempo” [xi]. Nestes casos, a pesquisa é inevitavelmente antropoformizante e participante, por tabela uma forma de expressão de memória afetiva, individual e coletiva. A operação de invizibilização e esquecimento da “espanhola” decorre, certamente, de um recalque da memória coletiva hegemônica e não apenas das particulares escolhas e vicissitudes da pesquisa.   

Assim, esquecida a gripe, o “curto século XX” foi inaugurado pela combinação de Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e os termos draconianos do Acordo de Versalhes (aliás, celebrados nos arredores da grande Paris em plena pandemia, que pespegou as mais importantes lideranças da conferência, especialmente o presidente americano Woodrow Wilson) [xii]. Foi um tempo que abalou as placas tectônicas da história. Os principais cataclismos levados em consideração na conjuntura de 1918 a 1923 são indubitáveis acontecimentos magnos, como a guerra civil na URSS, a Revolução alemã de 1918-1919 (400.000 mortos pela gripe), o Biennio Rosso italiano (1918-1919) e a reação da “Marcha [de Mussolini] sobre Roma” em 1922 (a Itália foi o país europeu mais afligido pela Espanhola, 1% da população perdeu a vida), etc. Rigorosamente, a conjuntura de cataclismos do pós-guerra só serenou um pouco em 1923, até 1929. Um bom exemplo, entre outros, é o alemão, quando a hiperinflação do país estancou após a realização de uma reforma monetária radical (emissão de uma nova moeda) e a entrada de dinheiro de financiamento de empréstimos americanos. Foi um breve interregno: a voragem da crise retomou com força inaudita, na Europa e no mundo, após colapso financeiro de 1929.  

Além da censura de guerra e a consequente redução de rastros documentais já na origem do evento, dois outros motivos colaboraram para a invizibilização da gripe. Em primeiro lugar, a mortandade da juventude europeia se espraiou majoritariamente a partir e nas estrias dos escaninhos da guerra, na circunscrição das trincheiras francesas, britânicas e alemãs. As tropas literalmente se empestaram, devido às condições sub-humanas da vida no subsolo, do vírus influenza H1N1. Misturaram-se metralhadoras e condições sanitárias; a violência da bala submergiu e submeteu a visibilidade do bio pandêmico. Depois, o fato de a pandemia ter sido mais letal na periferia do planeta que na Europa, especialmente na Índia (mínimo de 30 milhões de mortes). Comenta Mike Davis sobre a letalidade da espanhola na periferia que “a gripe no Terceiro Mundo é amplamente invisível ou historicamente mal estudada” e passou por “duas gerações de amnésia cultural” (...) “tem sido dada uma atenção chocantemente pequena à ecologia da doença em seu principal teatro da mortalidade: a Índia britânica” [xiii].

Há poucos dias, no pleno curso da pandemia da Covid-19, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz retomou a periodização de Hobsbawm e, a partir dela, enunciou uma retificação inteligente e cativante. Depois do fim do velho século e começo do novo, enunciados por Hobsbawm (URSS e Torres Gêmeas), ela pincela no afresco um terceiro recomeço secular: “o século XXI só começa depois da pandemia”. Conforme a intelectual, a autoimagem do século XX via-de-regra tem sido pincelada como a de “um mundo sem barreiras que funciona em rede” - um tempo de alta tecnologia... mas... de repente... Um microrganismo “conseguiu parar grandes impérios como os Estados Unidos, a Europa, a China e até pequenas aldeias” [xiv]. Em apoio a outras considerações Hobsbawm, desta feita sobre o “longo século XIX” [xv], Lilia afirma que o século retrasado (XIX) “pensou que todo tipo de invento, por si só, libertaria as pessoas”. Por isso o século retrasado só acaba no trauma das carnificinas da Primeira Guerra Mundial. O lúgubre da guerra fez picadinho da principal representação do século XIX sobre si mesmo - o ideal de progresso.

Cabe aproveitar o insight de Lilia e apensar questões. Curioso, o curto vídeo da antropóloga - talvez por pressão de tempo ou a tirania da montagem -, infelizmente, deixa de aprofundar por que a autoimagem do mundo contemporâneo como “um mundo sem barreiras que funciona em rede” pouco ou nada se diferencia da autoimagem otimista do século XIX. Essa a autoimagem é insistentemente igual porque se baseia no parâmetro exclusivo de evolução da técnica. No fundo, a autoimagem descrita pela antropóloga, menos que a do esquecido século XX, é a dos recentes anos 1990, ou seja, os tempos áureos da “globalização”, do clintonismo, da “terceira via” de Tony Blair e Anthony Giddens, da “sociedade em redes” de Manuel Castells, etc. Não é de graça que os anos 1990 se pintou pela segunda vez, novamente como na aurora do século XX, uma sorridente e extemporânea Belle Époque.

Imagens não caem de pés de maça por gravidade. É construção. Ambas as autoimagens dominantes, tanto do “longo século XIX” como do “novo século XXI”, estão atadas às bolas de ferro celebratórias de róseos determinismos tecnológicos. O fundo na narrativa é o elogio no salto na evolução das forças produtivas. No século XIX, a força da imaginação vinha do trem serpenteando estradas; no tempo contemporâneo, a imaginação vem das trocas “na aldeia global das sociedades em redes”. A ideologia do progresso continua firme e forte no proscênio dos séculos. Isso dá motivo, neste interregno, para complementar a inspirada sentença de Tony Judt: o século XX não apenas é esquecido. Pior, esqueceu-se de si mesmo. O “trauma” da Primeira Guerra parece ter sido curado, nem é mais um retrato na parede; conquanto seja um tema de muitos especialistas e farta bibliografia, hoje começa a ficar mais ou menos claro ter havido uma grande amnésia coletiva em relação, por exemplo, à experiência do fascismo no século XX. É possível enfileirar muitos exemplos de esquecimento... 

Um dos pontos altos do vídeo de Lilia sucede quando ela sugere que, entre o velho século exaurido e o novo porvir, se esteja vivendo, na quarentena da Covid-19, um aristocrático intervalo que pode ser intitulado - por que não? - de Tempo Pandêmico. Ao menos entre os intelectuais, sempre é possível entrever a possibilidade um tempo de abertura para a reflexão do funcionamento da máquina do mundo. A historiadora cita que temas como o valor da igualdade e a necessidade sanitária de sistemas públicos de saúde retornaram à esfera pública. No passado, no auge da Peste Negra em 1348, houve um Tempo Decamerão. Sete mulheres e três homens jovens abandonaram Florença e se refugiam em um recanto campestre nas cercanias da cidade (até aquela pandemia, a diretiva era fugir da cidade, em vez de se manter em isolamento privado em casa), encontro inusitado devido os padrões religiosos da época, e assim começam a contar aventuras maliciosas e picarescas. Daí saiu um dos clássicos inaugurais da literatura universal e um prenúncio da chegada do Renascimento [xvi].


NOTAS

[i] JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido (1900-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

[ii] SERGE, Victor. Les Révolutionnaires: romans. Paris: Seuil, 1980, p. 574.

[iii] ANDRADE DRUMMOND, Carlos. “Carta a Stalingrado”. In: A rosa do povo. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 201.

[iv] HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 13.

[v] HOBSBAWM, Eric J. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 447.

[vi] Sobre acertos e deficiências da periodização de Eric Hobsbawm, ver: Ver: Anderson, Perry. “A esquerda vencida”. In: Anderson, Perry. Espectro. Da direita à esquerda no mundo as ideias. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 315-360.

[vii] Croby, Alfred W. America’s forgotten pandemic. The influenza of 1918. Cambridge, Cambridge Press, 2003.

[viii] Sobre a dialética de antropoformização (característico das artes) e desantropoformização (característico das ciências), ver LUKÁCS, Greog. Estetica 1. Cuestiones preliminares y de principio. México: Grijalbo, 1966, pp. 3-168.

[ix] Um exemplo inaugural de antropoformização do vírus é ilustrado por Marx e Engels, ao escreverem no clássico Manifesto do Partido Comunista que é “nas crises evidencia-se uma epidemia social”. MARX, K & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Prólogo de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez, 1998, p. 11.

[x] Como sabido, Albert Camus escreveu a alegoria da chegada da peste na imaginária cidade argelina de Orã “em 194…” visando os dilemas éticos postos pela ocupação alemã nazista no território francês. CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 9.   

[xi] “Uma coisa é escrever a história da Antiguidade Clássica, ou das Cruzadas, ou da Inglaterra dos Tudor como precursora do século XX (…) outra bem diversa é escrever a história de seu próprio tempo”. In: HOBSBAWM, Eric J. “O presente como história: escrever a história de seu próprio tempo”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 43, p. 103, nov. 1995.  

[xii] BARRY, Jonh M. A grande gripe. A história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020, p. 334.

[xiii] DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária. Rio de Janeiro: Record, 2006, pp. 35-36.

[xiv] SCHWARCZ, Lilia Moritz. “O século XXI só começou depois da pandemia”, in: Canal da Lili (Youtube), 1/5/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dXHnwrT9asg&t=16s. Acesso: 3/5/2020.

[xv] “Se há datas que obedecem a algo mais que à necessidade de periodização, agosto de 1914 [Alemanha declara guerra à Rússia e à França, começa a Primeira Guerra Mundial] é uma delas: foi considerado o marco do fim do mundo feito por e para a burguesia. Assinala o fim do ‘longo século XIX’”. In: HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 1998, p. 19).   

[xvi] BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril, 1979.

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