Cultura ou Sociedade, Política e Estado? A falência do Brasil não tem “raízes”


Jaldes Meneses

Leio alguns comentaristas atribuindo à cultura, a certa complacência “anarquista” e “irracional” brasileira, o desastre anunciado de nossa quarentena, como se o nosso gaúcho fosse, na essência, diferente do gaúcho argentino, o nissei paulista do japonês, o nordestino do homem meridional da Itália. Trata-se de uma tese de pensamento conservador, que disfarça a falência do Estado e a tragédia da conjuntura política brasileira. 

A falência do nosso Estado e de nossa política, sem dúvida, é profunda, transformou a nossa sociedade em anômica, a qual não se deve descartar, a prazo mais longo, até a possiblidade de um desmembramento territorial. O Brasil está deixando de ser Brasil. 

São várias as camadas dessa falência. Na camada mais exibida, o governo Bolsonaro tem o discurso da “ordem”, mas é missa da boca para fora. De fato, é um governo incapaz de formular e rodar uma única política pública consistente. A única política pública consistente em curso na quarentena, o abono emergencial, origina-se do congresso e de setores da esquerda. O ultraneoliberlismo de Paulo Guedes é uma variante do anarcocapitalismo, incapaz de não apenas planejamento, mas até de qualquer pensamento articulado e provido de racionalidade histórica e econômica (isso no Brasil da Sudene e do BNDES, de Celso Furtado e Ignácio Rangel, cujas lições as missões chinesas e coreanas vinham aprender). As instituições permanentes do Estado, como as forças armadas e o poder judiciário, não passam de corpos desarticulados de um poder corporativo-egoístico incapaz de pensamento universal.

Como chegamos até aqui? Existe uma tendência, que começou na interpretação histórica e virou senso comum, de atribuir nossa tragédia contemporânea ao “passado escravista”, o “patrimonialismo”, a “perversidade das elites”, etc. Por arte tirada sabe-se lá da cartola de que mágico, parece que estamos sempre em modo "viagem redonda", condenados a sempre “repor” a nossa formação. Sem dúvida, existe alguma “inércia da formação”, mas essa interpretação, no fundo, é determinista e apaziguadora. A questão brasileira está longe de ser uma mera “reposição da formação”. Sartre já dizia, com razão, que somos o que fazemos do que fizeram de nós. 

O que aí está é o resultado contraditório e recente, em primeiro lugar, das transformações do capitalismo sem causa pública que vingou no Brasil, desde o plano real até aqui. Somos resultado de uma crise orgânica de hegemonia radical e profunda, que quebrou o sistema político, que segue como um moribundo na ausência de alternativa. Tal crise emergiu nas manifestações de 2013 e segue em curso no governo Bolsonaro. Toda crise tem seu desenlace e são esses os nós -sem desconhecer a importância de outros nós -, mais importantes a serem desatados.

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