Florestan Fernandes e a teoria da revolução burguesa no Brasil

Jaldes Meneses
Prof. Titular do Departamento de História da UFPB

1. Introdução

 

Professor universitário socialmente respeitado e militante de esquerda à época sem partido definido, adversário intransigente da ditadura militar de 1964, dez anos após a instauração da ditadura (1974), Florestan Fernandes (cujo centenário de nascimento comemora-se em 22/07/2020), pincelava os retoques finais na máquina de escrever de um livro ambicioso intitulado A revolução burguesa no Brasil - ensaio de interpretação sociológica, cujos quarenta e cinco anos de primeira edição comemora-se também neste ano. Culminava o autor uma conscienciosa reflexão que durou muitos anos, no guarda-chuvas do projeto de pesquisa coletivo “Economia e Sociedade no Brasil”, sobre o conteúdo do processo da revolução burguesa no Brasil. Foram 10 anos de dificuldades, nos quais o intelectual, aposentado compulsoriamente na USP em 1969, teve de peregrinar em estadias como Visiting Scholar na Universidade de Columbia (Nova Iorque) e Professor Titular em Toronto (Canadá). Subverteu forçado o caminho de Wilhelm Meister (personagem clássico de Goethe) que peregrinou nos anos de formação e acomodou-se na maturidade (Goethe, 2006). Inteiramente formando no ambiente de São Paulo, Florestan foi obrigado a peregrinar um carregando um sofrimento maduro – levando a saudade e deixando a família em São Paulo - e nunca se adaptou em viver plenamente no universo das tink tanks lá de fora.

 

O ambicioso e complexo livro já nasceu clássico, percorria e interpretava toda a história do Brasil (Colônia, Independência, Império, República e Ditadura). Além da larga duração temporal, a estrutura do livro é complexa, dividido do ponto de vista metodológico em duas partes fornidas de perguntas e suportes de tipos weberianos e conceitos positivos durkheianos, mais uma terceira parte final de viés marxista francamente radical e revolucionário. De início, a primeira versão do manuscrito, composto de notas do capítulo da Colônia e fragmentos da parte do Império – na edição final chamados de “as origens da Revolução Burguesa e “a formação da ordem social competitiva (fragmento)”, foi recebido com reticências por algumas pessoas de sua equipe de pesquisadores, -, certamente não apenas por cautelas metodológicas, mas também pelas conclusões políticas que o texto encaminhava. Florestan chamava essa equipe de “núcleo estratégico” do trabalho intelectual da sociologia de São Paulo (Fernandes, 2006, p. 21), ávido em buscar um padrão novo para a universidade brasileira, de excelência científica internacional. Conforme observa o autor na “Nota Explicativa” do livro, “comecei a escrever este livro em 1966 (...) A primeira parte foi escrita no primeiro semestre daquele ano; e o fragmento da segunda parte no fim do mesmo ano. Vários colegas e amigos leram a primeira parte, alguns demonstrando aceitar os meus pontos de vista, outros combatendo-os. Isso desanimou-me...” (Fernandes, 2005, p. 25)”. 

 

A obra despertou desde cedo um vigoroso debate acadêmico no exterior impossível de aflorar em plena ditadura livremente em Universidades brasileiras. Já em 1976 a University of Texas of Austin realizou um Colóquio coordenado pelos professores Carlos Guilherme Mota (USP) e Fred P. Ellison (Austin), com contribuições escritas de Emília Viotti da Costa, Paulo Silveira, Juarez Brandão Lopes, Bernardo Berdiehewsky e uma resposta às intervenções, escrita pelo próprio autor (Vários Autores, 1978, p. 176-207).

 

Mas também despertou o interesse de outro mundo, a perseguida e heroica esquerda revolucionária e clandestina. Segundo Anita Leocádia Prestes, a leitura de Florestan foi uma das fontes de seu pai, Luiz Carlos Prestes, Secretário-Geral do PCB (Partido Comunista Brasileiro), no questionamento da linha dominante no “partidão”, que ele mesmo antes ajudou a predominar, ao subscrever a Declaração de Março de 1958 e a linha do VI Congresso (1967) (Carone, 1982a, p. 176-195; 1982b, p. 15-27; Gorender, 1987, p. 25-32).

 

O PCB, ainda o partido mais influente na esquerda, entrou em modo irremediável de crise de identidade e decadência. A estratégia nacional e democrática e o corolário benfazejo da conquista de um capitalismo autônomo no Brasil a partir de uma aliança antimperialista e antilatifundiária entre os trabalhadores e a burguesia nacional (classe depois definida, por falta de projeto nacional autônomo, como burguesia interna ou brasileira,). Embora passível de crítica,  a linha fazia sentido até 1964 – o que até certo ponto justificava o empenho de Prestes. No entanto, exauria totalmente na década de 1970 devido à conclusão do processo das “transformações capitalistas” (Fernandes, 2005, p. 337-424) encaminhadas pela ditadura – “se já houve, alguma vez, um ‘paraíso burguês’, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968” (Fernandes, 2005, p. 4169). Exilado na União Soviética, o velho secretário recomeçou a estudar autocriticamente a realidade brasileira: “esse esforço de leitura é comprovado pelas numerosas fichas e anotações de leituras (...) tanto de obras dos clássicos do marxismo quanto de autores brasileiros contemporâneos, entre os quais os escritos do sociólogo Florestan Fernandes” (Prestes, 2012, p. 190). Também no âmbito dos intelectuais de esquerda do PCB, autores como José Paulo Netto (1991; 2004, p. 203-222) e Antônio Carlos Mazzeo (2015), entre outros, incorporaram e sobrelevaram em suas interpretações do Brasil o conceito, totalmente estranho à linha dominante no PCB, de “autocracia burguesa”.          

 

Naquele mesmo ano de 1974 assumia a Presidência da República o general Ernesto Geisel com projetos de fazer uma transição política controlada e conservadora da ditadura a um regime civil, mas ações subterrâneas da linha dura corroíam a fortaleza da estratégia de transição. Geisel deu um freio de arrumação na linha dura, demitindo sem apelo o General Sílvio Frota, mas, mesmo adotando contumazes estratégias de fuga para a frente não impediu a emergência da crise da economia, da sociedade e do regime. Feito aprendizes de feiticeiro, ao desenvolver a economia brasileira e adensar a sociedade civil, os militares involuntariamente fabricaram potenciais coveiros, nas figuras de um novo movimento operário fordista e periférico e do histórico protagonismo de classe média do movimento estudantil. Por sua vez, o capitalismo internacional entrou numa fase de incertezas da qual rigorosamente não saiu até hoje. Um dos primeiros resultados da crise, como mostram autores distintos como José Luís Fiori (2003) e Luiz Carlos Bresser-Pereira (1992), o Estado Desenvolvimentista quebrou. Mais que isso, talvez como uma espécie de dança dos “últimos dos tenentes” - Geisel começou a participar de política e conspiração nos quarteis como membro dos “tenentes” (D’Araújo&Castro, 1997; Gaspari, 2014) – exatamente no seu governo aconteceu o réquiem do bloco histórico burguês nacional-desenvolvimentista surgido no processo revolucionário de 1930. O processo de revolução burguesa, no livro e na realidade, enfim estacionava em um porto que deu à luz, se saberia anos mais tarde, a um “ornitorrinco” (Oliveira, 2003, p. 121-150). Estava em causa, portanto, muito mais que o lugar da presença da corporação militar na composição do bloco no poder reacionário. O próprio bloco histórico de 1930 faleceu e virou um drummoniano "retrato na parede".

 

As grandes obras deixam grandes perguntas. Por isso, é tarefa intelectual de porte perscrutar a recente evolução brasileira à luz dos conceitos e perguntas desatados de "A Revolução Burguesa no Brasil": teríamos completado o ciclo da revolução burguesa entre nós com a assunção, especialmente após a edição do Plano Real (1994), a uma nova fase da dependência pilotada por um Estado dependente-rentístico? A aliança entre trabalhadores e empresários, emblematizado na chamada “era Lula” seria politicamente viável? A conquista da democracia política, afastados os militares do poder, teria equacionado salutarmente a cultura política brasileira e internalizado os valores da democracia e do republicanismo, extinguindo as possibilidades de reprodução da “autocracia burguesa”? As constrições da dependência econômica - herança da "via colonial" ou da “via colonial-prussiana” tipificadora da formação histórica do Brasil – realmente restringem as plenas possibilidades de desenvolvimento capitalista? É possível uma convivência de longo prazo, mais além dos ciclos de conjuntura, entre democracia e desenvolvimento econômico associado? Apenas o socialismo permite o desenvolvimento autônomo do Brasil?


Por tudo isso, refletir Florestan, portanto, é extremamente atual, a um só tempo homenagem e sinal de contemporaneidade política. Professor universitário e militante de esquerda, não se pode dizer que Florestan seja um autor esquecido. Unanimemente lembrado na galeria de uma geração do tope de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Ruy Mauro Marini, entre outros – autores que lograram formular interpretações originais do Brasil -, legou ao pensamento social brasileiro densa obra de mais ou menos cinquenta títulos, da qual, certamente, o mais importante é “Revolução Burguesa no Brasil”. Vale a pena observar, contudo, que embora Florestan não seja um autor esquecido, tampouco se pode afirmar que sua versão do Brasil seja plenamente conhecida e debatida, havendo sendas inexploradas e incompreendidas de seu pensamento.

 

O conteúdo explosivo e radical da obra vinda a lume em 1974 significou também a conclusão de uma viragem no pensamento de Florestan. A partir daquele momento, conquanto não sem crispações, o militante radical abandona a pele de influente sociólogo – cultor paradoxal de um “ecletismo bem temperado, não simplesmente relativizador nem atomizador dos procedimentos analíticos” (Cohn, 1987, p. 50) -, mestre de vários discípulos intelectuais conhecidos (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, José de Souza Martins, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Luiz Pereira etc.), e parte para o combate de peito aberto à ditadura com as armas da teoria marxista. Contudo, não o marxismo dos salões - que vive da citação do autor francês em moda -, mas um marxismo revolucionário, fundamentado, principalmente, em Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, José Martí, Mariátegui, Che Guevara, Fidel Castro, etc. Seja dito em benefício de uma revisão apurada da fortuna crítica de Florestan hoje: entre todos os interpretes clássicos do Brasil, hauridos da efervescência cultural do período do bloco histórico de 1930-1974/84, ainda atuantes na transição da ditadura, o intelectual paulista foi certamente o mais radicalizado.


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