Florestan Fernandes: “Ecletismo bem temperado” e marxismo revolucionário

Jaldes Meneses

Por tudo isso, refletir Florestan, é extremamente atual, um misto de homenagem e sinal de contemporaneidade política. Professor universitário e militante de esquerda, não se pode dizer que Florestan seja um autor esquecido. Unanimemente lembrado na galeria de uma geração do tope de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Ignácio Rangel, Alberto Passos Guimarães, Francisco de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Ruy Mauro Marini, entre outros – autores que lograram formular influentes interpretações originais do Brasil -, legou ao pensamento social brasileiro densa obra de mais ou menos cinquenta títulos, da qual, certamente, o mais importante é Revolução Burguesa no Brasil. Vale a pena observar, contudo, que embora Florestan não seja um autor esquecido, tampouco se pode afirmar que sua interpretação do Brasil seja plenamente conhecida e debatida, pois há muitas sendas ainda inexploradas, incompreendidas e desafiantes de seu pensamento.
O conteúdo armazenado in nuce explosivo e radical da obra vinda a lume em 1975 significou também a conclusão de uma viragem no pensamento de Florestan. A partir daquele momento, conquanto não sem crispações, o militante radicalizado pelas obras da ditadura abandona definitivamente a pele confortável e as perífrases de influente sociólogo – cultor paradoxal de um “ecletismo bem temperado, não simplesmente relativizador nem atomizador dos procedimentos analíticos” (Cohn, 1987, p. 50). Já influente e reconhecido, mestre de vários discípulos intelectuais famosos no meio acadêmico (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, José de Souza Martins, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Luiz Pereira etc.), nosso autor se despe de capas protetoras e parte para o combate de peito aberto à ditadura com as armas da teoria marxista. Contudo, preste-se atenção, não o marxismo dos salões - que sobrevive da citação do autor francês em moda na Rive Gauche. Mas um marxismo revolucionário, fundamentado, principalmente, em autores da estatura de Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, José Martí, José Carlos Mariátegui, Che Guevara, Fidel Castro, etc.; como também da excelente economia política e teoria política marxistas dos anos 1960/70, Ernest Mandel, Harry Magdoff, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas, etc.
Um primeiro parâmetro a ser assentado numa necessária revisão apurada da obra e da fortuna crítica de Florestan hoje: entre todos os interpretes clássicos do Brasil, hauridos da efervescência cultural do período do bloco histórico de 1930-1974/84, ainda atuantes na transição da ditadura, o intelectual paulista foi certamente o mais radicalizado em pensamento. Devido à radicalidade teórico-política, conceitos de potência crítica subestimada no período histórico recente de democratização pós-ditadura, como “autocracia burguesa“, bem como a crítica florestiana ao conteúdo liberal implícito no conceito de “autoritarismo”, continuam perenes e precisam urgentemente ser revisitados neste Brasil em transe dos tempos de Bolsonaro.
Durante muito tempo Florestan foi um sociólogo dedicado de corpo e alma em contribuir com soluções metodológicas originais aos desafios epistemológicos do ofício científico-acadêmico rigoroso em pesquisa sociológica empírica. Havia nesta labuta uma nítida e produtiva fragmentação onto-existencial, pois ele cuidava de separar escrupulosamente dois momentos de seu espírito, a vocação revolucionária e o trabalho científico. Escreve o nosso autor: “fiquei como uma pessoa dividida ao meio, entre o sociólogo e o socialista” (Fernandes, 2006, 31). Personalidade complexa, ele jamais abdicou de suas raízes socialistas, que vinham da militância jovem no grupo trotskista de Hermínio Sacchetta, conhecido como Partido Socialista Revolucionário (PSR), no qual militou entre 1942 até mais ou menos 1952. Mas teve de abdicar de uma militância estritamente política, como ele mesmo conta em vários depoimentos pessoais, em função de um projeto intelectual que continha, sem dúvida, uma dimensão política, mas através da mediação do projeto específico de desenvolver em São Paulo uma escola sociológica crítica de elevando padrão universitário.
Observe-se em favor desse projeto que ele se incumbiu, antes de tudo, de privilegiar, na condição de objetos de pesquisa, os chamados excluídos da história, os índios, os negros, os imigrantes, os trabalhadores, etc. Para reconstruir, em forma de saber científico, as agruras de todos esses excluídos da história, o compromisso ético era imprescindível, mas insuficiente. Seria necessário conhecer esses objetos a fundo, utilizar e inovar instrumentalmente métodos e teorias hauridos da tradição acadêmica sociológica, mas especialmente ansiar, através de uma leitura rigorosa, o domínio, ainda ralo na tradição bacharelesca das humanidades brasileiras, dos clássicos do cânone da disciplina. Atuando nas sombras, tal projeto fazia sentido naquele momento do país moldado pelo bloco histórico de 1930, de modernização institucional do capitalismo brasileiro. Outros esforços de época ocorridos em São Paulo, como a introdução de uma cultura filosófica sistemática pela apreensão dos métodos monográficos franceses de história da filosofia, conquanto diferentes, são parelhos aos esforços dos sociólogos (Arantes, 1994). Nada disso significa dizer, esclareça-se, que não tivemos nem tínhamos grandes intelectuais no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Minas e no Nordeste, nem que os paulistas sejam o marco zero da pesquisa em ciências sociais, duas ideias simplórias que fogem ao escopo do artigo adentrar.
Muito importante observar que, no labor de desenvolver uma escola científica em sociologia na província de São Paulo, Florestan jamais palmilhou pela cilada de operar uma síntese eclética de pensadores como Marx, Weber e Durkheim. Seu “ecletismo bem temperado” é sistêmico, passa longe de ser mais um desses “humanitismos” machadianos, um “emplasto Brás Cubas” retórico, pródigos na intelectualidade brasileira das classes dominantes até hoje: “o estudo que fiz de Marx e Engels levou-me à conclusão de que não se podiam fundir pensamentos que são opostos. Seria muito mais fecundo procurar a razão de ser de sua diferença específica. Eu começava a enfrentar, assim, a questão de saber qual é a contribuição teórica específica de Durkheim, de Marx, de Max Weber etc., e por aí tentei descobrir as respostas” (Fernandes, 2006, 17). Por isso, como afirma corretamente Cohn (1986, p. 125-148; 1987, p. 48-53), o autor faz perguntas de tipo weberiano (tipo ideais) ou durkheimianos (tipo médio) e vai trabalhando em sua oficina, costurando por dentro e de maneira tensa (Florestan é um autor de linguagem tensa), uma resposta – à falta de um termo mais adequado – materialista.
Gramsci dizia com razão que toda grande pesquisa cria seu próprio método. O procedimento original de Fernandes, embora diste da tentação de fundir alhos bugalhos, por outro lado resultava em convívio com tensões e torções de linguagem até chegar à ourivesaria da categoria precisa, já saturada de pesquisa da realidade social. Por exemplo, sobre a burguesia brasileira, Florestan definiu durante algum tempo que nossa burguesia tinha um talhe estrutural “heteronímico”. Sem dúvida, a burguesia brasileira é heteronímica, mas talvez este não seja o termo que mais sature as determinações da realidade. Certamente por isso, após muita pesquisa empírica e teórica, passou a adotar o termo “burguesia dependente”.
O Brasil não é para amadores. Tome-se o exemplo da sempre complexa discussão sobre o conceito de classes sociais. Como são muitas as dificuldades de explicar o conceito de classes como chave explicativa da estrutura da sociedade colonial, Florestan preferiu designar nossos primeiros grupos sociais dominantes como “estamentos”. E. P. Thompson (1989, p. 13-61), em outra chave teórica, aventou a possibilidade, na experiência de formação da classe operária inglesa, de uma “luta de classes sem classes”. No Brasil, elaborando por conta e risco, Florestan adotou a terminologia de transição a uma “ordem social competitiva” (ou seja, o processo de transição de uma ordem escravista até uma sociedade capitalista) para não perder de vista as particularidades das relações, dualmente escravistas e patriarcais, que aqui vicejaram.
De todos os conceitos originais criados pelo autor, talvez um dos mais heterodoxos seja o de “ordem social”. A propósito, escreve Heloisa Fernandes, em e-mail antigo ao autor deste artigo: "... eu costumava discutir com o meu pai sobre o ecletismo, mas, hoje, penso que o "ecletismo bem temperado" do Florestan permitiu que ele inventasse o conceito de ordem social - sei que é de marca weberiana, mas é uma invenção do Florestan, porque, para Weber a ordem capitalista, definindo-se pelo mercado, é uma ordem econômica enquanto a ordem social é mais propriamente a estamental e de castas, que se define pelo modo de vida. De todo modo, digo eu, este conceito de ordem social é o que há de mais rico no Florestan porque, graças a ele, como escrevo (...), 'o sociólogo manteve-se atento à exclusão da maioria da plena cidadania e o socialista não submergiu numa narrativa teleológica das classes sociais'". Para mim, é ainda mais: entender as origens do capitalismo brasileiro na chave de "ordem social" permite integrar à análise - mais ou menos à maneira do conceito de "bloco histórico" em Gramsci, - blocos temporais relativamente longos amalgamando economia, cultura e política, integrando estrutura e superestrutura em mútua incidência.
Por tudo isso, parece-me que a opção teórica e existencial de Fernandes pelo marxismo processou-se um por via bastante pessoal e original. O peculiar marxismo de Fernandes, mesmo na fase mais madura, abertamente revolucionária, possui uma dicção própria e às vezes até surpreendente, como um jogo dialético de linguagem em que a terminologia do “ecletismo bem temperado” surge no “marxismo revolucionário”, assim como, muitas vezes, no passado, a linguagem do “marxismo revolucionário” surpreende no “ecletismo bem temperado”. Assim, curiosamente, a dicção da escrita de Florestan sempre é eivada da presença conteudística do marxismo, de expressões hauridas da antropologia funcionalista estadunidense, da sociologia estruturalista da Escola de Chicago, da sociologia da cultura de Karl Mannheim, etc. Porém, conquanto a exposição esteja permeada da nomenclatura haurida da sociologia e da antropologia canônicas, a investigação é feita sob os auspícios de um método dialético de análise, no qual para mim situa-se este inimitável e particularíssimo “ecletismo bem temperado”.
Assim, havia em Florestan uma disjuntiva: no plano estritamente político Fernandes sempre esteve situado à esquerda e professou o marxismo, mas, no plano conceitual, a passagem para o marxismo realizou-se em um longo prazo e com crispações de pensamento, revelado pelo resíduo funcionalista no plano da exposição. Em depoimento datado de 1980, diz-nos Florestan: “(...) durante algum tempo, eu corri o risco de palmilhar o caminho (...) de pulverizar as ciências e de procurar uma falsa autonomia das ciências. Eu teria entrado por um mau caminho. O que me salvou foi a impregnação marxista da minha relação ética com os problemas da sociedade brasileira” (Fernandes, 1995, p. 15).
Um dos efeitos mais importantes desse marxismo personalíssimo - que só eleva o gênio do autor - é que categorias e problemáticas por longo tempo ladrilhadas no âmbito da tradição marxista retornam enfim com vigorosa força heurística em A revolução burguesa..., em grau sem parâmetro na própria obra anterior de Florestan. A questão de formação do mercado interno numa economia de capitalismo periférico, vide Lênin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1982), até a necessidade expansiva do imperialismo contemporâneo, estudado por Rosa Luxemburgo em A acumulação do capital (1985), entre outros escritos, comparecem especialmente citados na seção intitulada pelo próprio Florestan como “bibliografia de referência” em A revolução burguesa... (Fernandes, 2005, p. 426). Mais que acúmulo, ou seja, mais que um tijolinho a mais assentado no trabalho da ciência, aqui houve um salto que qualidade. A questão do método de investigação e exposição em Florestan, aliás, é um tema que precisa ser mais pesquisado seriamente.

Segunda parte do paper que tou escrevendo sobre Florestan Fernandes. Segue sem revisão e ainda em estado de Work in Progress. Segue...

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