Escutei atentamente o novo CD da cantora Eleonora Falcone. Segue um comentário crítico com ênfase no que chamo de dificuldades de socialização da experiência lírica no mundo contemporâneo.
A Experência Lírica: Eleonora Falcone
Jaldes Reis de Meneses.
Professor do Departamento de História (UFPB).
e-mail:
jaldesm@uol.com.br

O segundo disco (agosto, 2007) de Eleonora Falcone acaba de sair do forno, em caprichada edição independente, e deverá ser lançado, em sua cidade natal, João Pessoa, dia 25 de setembro. O primeiro chamava-se Apetite, hoje quase uma raridade, ao passo que o novo exibe na capa um título gigantesco, intrigante, quase como um enigma a ser decifrado – Eu tenho um pedaço de sol que guardo comigo desde menina. A frase do título aparece num dos versos da última, e uma das melhores – difícil escolher uma melhor –, das dez canções do CD (Pedaço de Sol, Eleonora Falcone/Lúcio Lins). Trata-se de uma senha inicial: o disco anterior, cujo título é um único vocábulo, vinha com sonoridades pop; o novo, mais reflexivo (não diria introspectivo), sustenta elementos da pegada pop, contudo, abunda em lirismo, dissimulado no trabalho anterior.
Ao ouvinte, um conselho: é preciso escutar o novo disco de Eleonora como uma totalidade, o desenredo de um conceito agente nos mínimos detalhes; nas fotos, nas dedicatórias, nos agradecimentos, nos arranjos e nas canções. Uma fina ourivesaria na qual conta a atenção à minúcia. Um dos melhores métodos de escavação do detalhe conforme Gramsci era o do “ossinho de Curvier” (naturalista do século XIX) – a paciente remontagem da compleição física total de um animal pré-histórico, a partir do vestígio de um simples ossinho. Doravante, pretendo remontar as peças da cadeia de significações sugeridas pela audição de Eleonora à maneira de Curvier, pelo ossinho.
Todas as canções do disco são de autoria dos melhores compositores e poetas paraibanos. Isso já significa uma totalidade, ou um conceito, porém ainda em estado bruto, digamos, geográfico e abstrato. A totalidade concreta de dissecação do trabalho advém do cotejo da cultura, aqui traduzido como uma tentativa de interpretação do campo das experiências comuns, triviais e cotidianos, vividas pela artista.
Dessa maneira, seguir tão somente a pista regionalista (a geografia), para mim, é uma obviedade, um fácil caminho de superfície que pode mais esconder que revelar. Prefiro explorar outra leitura: nas entrelinhas, nas fimbrias, todas as canções do disco abordam experiências universais, certamente com sotaque paraibano, mas reconhecíveis em qualquer recanto deste vasto mundo (talvez haja duas exceções mais estritamente regionalizantes – Carro de boi, de Erivan Araújo e Anderson Graciano, e Ô Serena Serená, de Odete de Pilar –, confirmando a regra?). Em uma palavra: o conceito do novo disco articula, costura, remete ao problema das possibilidades da experiência lírica na modernidade.
No mundo atual, o lirismo, embora não tenha uma estrutura monotemática, elabora principalmente os materiais de memória, passados através da experiência de individuação. Proust fez isso como ninguém. Neste sentido, sugiro uma comparação, entre umas das melhores canções do disco, Muxarabi (palavra que significa o balcão interno de uma janela moura, da qual se pode observar sem ser observado), letra e música de Eleonora Falcone (a propósito: a cantora e compositora é uma inspirada poetisa) e um dos poemas mais glosados de As Flores do Mal, de Baudelaire (A uma passante).
A cantora paraibana e o poeta francês tiveram uma mesma miragem (experiência lírica), ademais como qualquer um de nós: um desconhecido passa do outro lado da rua, o observador se encanta pela mágica do momento, mas aquela pessoa desaparece na voragem para nunca mais. Eleonora: “uma moça na janela/olha tudo que passa por ela (...) Vejo, ele não me vê/do meu muxarabi”. Baudelaire: “Uma mulher passou e com a mão faustosa/erguendo, balançando o festão e o debrum (...) Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente/não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais/ Tu que eu teria amado – e o sabia demais.” Nos dois casos, a experiência lírica produziu um encantamento, mas foi essencialmente solitária e fugaz. Trata-se de um lirismo complexo, cheio de volteios de alma; distante, por exemplo, da bela ingenuidade direta de A banda (Chico Buarque). Na canção de Chico, o amor chamava à janela para ver a banda passar. Em Muxarabi, assim como em A uma passante, a visão do outro se dá através de uma fresta, que se abre e ato continuo fecha.
Um dos temas privilegiados do disco de Eleonora Falcone é o mar, moradora desde criança da orla de Tambaú (Nome na areia, Paulo Ró e Águia Mendes; O homem que cheiro de mar, Eleonora Falcone e Val Velloso; Pedaço de Sol, Eleonora Falcone e Lúcio Lins). Vários compositores paraibanos cantaram o mar de João Pessoa, tais como Cátia de França (Ponta do Seixas) e Fuba (Ponta do Sol). São diferentes de Eleonora: Fuba compôs agradável exaltação telúrica e Cátia de França cantou a Ponta dos Seixas como um instante de alegria e saudades compartilhado (“o barulho da Dora lá atrás/ um dia eu vou voltar”). De alguma maneira, são duas percepções datadas (o que em nada invalida a beleza das duas canções de Fuba e Cátia de França): tenho pena da Dora ao voltar e reparar a destruição da barreira...
Seria superficial dizer que o mar é uma metáfora gasta. Nada disso, os grandes temas do lirismo e da épica se repetem ao longo dos tempos. O mar, em Eleonora Falcone, funciona como uma paisagem antevista de uma fresta, o elemento de natureza possível de uma vivência urbana e moderna. Um lugar de amor e nostalgia.
O mar teve seus grandes poetas, desde Fernando Pessoa (Mensagem) e Dorival Caymmi (É doce morrer no mar). Em Caymmi, o mar é todo natureza: quando, por exemplo, sobrevém à morte e a desgraça, é pela força das intempéries do tempo. O mar de Eleonora assemelha mais o de Fernando Pessoa, embora com uma diferença fundamental: o vate português conseguiu fazer, com elevados níveis de objetivação estética, uma espécie de ode antiépica do declínio de uma nação (Portugal), ao passo que o mar de nossa cantora discrepa da épica (mesmo da anti), para configurar uma vivência doce e sensível do cotidiano.
A experiência de declínio da paisagem da zona da mata paraibana motivou a escrita de José Lins do Rego, ao narrar o apagamento do fogo morto do engenho. Por seu turno, somos contemporâneos de outro processo de destruição, às vezes tão embrutecidos que sequer damos conta: o desaparecimento de uma civilidade na vida comum de nossa orla marítima. O novo trabalho de Eleonora Falcone, divisa um senso estético apurado que percebe pelas margens as ruínas de Tambaú, sem precisar ser direto ou apelativo, desde a especulação imobiliária e a violência urbana até as mudanças na própria ordem das marés, numa espécie de protesto cifrado, discreto, sem alarde, que apela à sensibilidade.
Na denúncia cifrada, exposta como sentimento, aliás, reside a força subversiva do lirismo, uma disposição estética que vem da Grécia clássica, quando as pessoas começaram a perceber a distância entre o ideal do herói homérico e a finitude do cidadão comum. Hoje, em vez do herói clássico, o lirismo desnuda a sanha de certo tipo de progresso. Walter Benjamin percebeu de maneira arguta, no seu estudo sobre Baudelaire, que as condições atuais de socialização do lirismo são difíceis: ele é endereçado a pessoas que sequer conhecemos que podem responder ou não a nossas mensagens; nos tempos antigos, todavia, a resposta à experiência lírica era imediata, dava-se nos círculos íntimos, como o de Safo de Lesbos e os amigos em volta de Arquíloco e Píndaro. Neste aspecto, pode residir uma “vantagem comparativa” do artista sobre os cidadãos: aqueles podem dispor de um palco e realizar a catarse.
No plano estritamente musical, enfim, o disco está afiadíssimo. Adianto minha canção favorita, estrita questão de gosto pessoal subjetivo (alô, Kant!): Passará (Pedro Osmar e Paulo Ró), pelo show de interpretação de Eleonora Falcone (à altura de Tetê Espíndola ou Gal Gosta) e a capacidade dos dois irmãos de Jaguaribe em dizer muito por meio de canções minimalistas.
Há um vídeo no youtube com uma das canções do CD - "Carta de Amor", um fado composto por Eleonora com letra do falecido poeta Lúcio Lins.
Mais sobre a cantora e compositora: http://www.eleonorafalcone.com.br/



Comentários

Águia Mendes disse…
Eis então que você, Jaldes, ressurge com o mesmo talento que aprendi a admirar desde que o conheci ainda pequena lava na barriga do bairo de Jaguaribe. O seu artigo sobre Eleonora é muito bom e o poema em loas à nossa Felipéia de N. S. das Neves é de uma felicidade de poeta de bem com a vida com as palavras. À primeira vista ou à primeira leitura já fui logo seduzido pelo título do seu blog. Campo de Ensaio é espetacular.
Grande abraço: Águia Mendes (ou Dé, se assim preferir.
Hi, Dé, grande amigo dos tempos remotos de Jaguaribe e o grande poeta de toda uma geração dos anos 70, ainda adolescente, obrigado,
Jaldes.

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