1930: oitenta anos

Jaldes Menezes

Artigo também postado no portal www.wscom.com.br
No mês vindouro, outubro, completará 80 anos o acontecimento
histórico em que o estancieiro Getúlio Vargas, dirigindo as tropas do Sul, depois de render os soldados de São Paulo na batalha que não houve (Itararé), em lance de suprema iconoclastia, amarrou o seu cavalo, mais o de alguns comandados, no Obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, então capital da república. Quase ninguém se recorda mais de 1930, processo esquadrinhado, estudado de diversos ângulos, desde as elites até dos de baixo, visto e revisto na historiografia brasileira.

1930: um assunto morto e enterrado. Será mesmo? Nos termos de Gramsci, sem dúvida o Bloco Histórico de 1930 morreu, não existe mais. Seu falecimento deu-se mais ou menos em meados da década de 1980 – no intermezzo do fim da ditadura e do começo do que o jornalista Jânio de Freitas chamou, à época, de transição transada. O sinal mais evidente do funeral foi a quebra do Estado que denomino de desenvolvimentista-conservador na famosa crise da dívida externa, em 1982, nos estertores do regime militar. A crise não era apenas de ci rcunstância, mas, visto de hoje, que com ela estava-se indo, definitivamente, a forma estatal que arrancou o Brasil da condição de país agrário e o levou à condição de país capitalista industrializado e socialmente desigual. Parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade – também ele um componente fundamental do bloco histórico -, trinta é um retrato na parede. Mas como dói. Quando se esvai e se morre, mais que a memória, fica a assombrar os espectros, atualmente redivivos do lulismo, autêntica esfinge truncada do varguismo.

De toda maneira, ao afirmar que o bloco de 1930 morreu, quero dizer que já cumpriu a missão a que se propôs. Realmente, era uma complexa engenharia política dirigida pelo Estado, uma amalgama de classes sociais decrépitas e emergentes, oligarquias regionais e classe operária, empresários nacionais e capital estrangeiro, militares e tecnocratas, intelectuais e sindicatos, que só poderia dar vetor e fazer sentido num lugar enigmático como o Brasil. Pois bem, Contemplando do posto avançado de hoje a obra, à maneira da coruja de Minerva de Hegel, o resultado é uma formação social que um Florestan Fernandes, por exemplo, crítico da obra ainda sendo feita, denominou de capitalismo tardio dependente e subdesenvolvido.

O Brasil não é Uganda ou o Afeganistão, mas também não é os Estados Unidos ou a Alemanha. Para compreender a particularidade da posição brasileira no concerto mundial, temos que mergulhar na história do país. E na história do Brasil contemporâneo, a assim chamada Revolução de 1930 apresenta-se como uma data capital. Beneficiamo-nos, entre os decênios de 1930 e 1970, de uma onda longa expansiva na economia capitalista mundial. Como herança desse período histórico, a problemática brasileira passou a ser a mesma – nos termos de Ernest Mandel – do capitalismo em sua fase tardia: um regime de acumulação relativamente completa, um Estado e uma sociedade civil articulados.

Porém, esse período histórico não deve ser fantasiado. O Brasil teve, sem dúvida, um processo de desenvolvimento econômico, crescimento industrial, urbanização e fortalecimento da sociedade civil, mas ao não talante de saltar por cima das vicissitudes do processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial, que situa o Brasil na esfera dependente do globo.

Esse o ponto frágil do processo brasileiro de modernização, e ademais latino americano; não ocorreu entre os países latino-americanos que saltaram da periferia para a semiperiferia do capitalismo durante a vigência da onda longa expansiva do capitalismo (Brasil, México e Argentina), um processo de industrialização orgânico, uma autonomização da dependência do Estado nacional em relação ao poder mundial, uma independência da sociedade civil face ao Estado.

Está certo, assim, Florestan Fernandes, ao afirmar, que “a ‘revolução burguesa’ no Brasil não se deu pela burguesia nacional, mas pelo capital monopolista. Ao utilizar a expressão “revolução burguesa” para designar o processo de modernização das estruturas produtivas e sociais do Brasil, Fernandes não está utilizando o conceito ao molde de identidade com as revoluções burguesas clássicas, como, principalmente, a francesa, onde, em sangrenta luta movimentada no seio da sociedade civil, a nova classe ascendente, a burguesia, logrou desalojar do poder de Estado a monarquia absoluta representante do poder feudal. Não. O conceito de “revolução burguesa”, aqui, diz respeito a um processo de longa duração, refe rente ao demorado processo brasileiro de transição ao capitalismo. O conceito de “revolução burguesa”, assim, apanha no seu âmago não apenas as características “revolucionárias” de uma revolução, mas, também, paramenta as contra-revolucionárias e desintegradoras, em especial o aproveitamento e reforço, pelo capital monopolista, de todos os elementos pré-capitalistas de atraso.

Um conceito, talvez mais rico, do que o de revolução burguesa, na forma cunhada por Fernandes, para designar o processo de transição não clássica do Brasil ao capitalismo, parece-me ser o de revolução passiva, da lavra de Gramsci, no caso brasileiro, à interpretação um tipo de revolução burguesa não jacobina, ou seja, um processo de transformações pelo alto, contudo articulado numa aliança com os de baixo, como é o caso do processo, como é o caso do processo deslanchado em 1930.
De todo modo, revolução passiva ou revolução burguesa prolongada, o fato é que, tivemos uma burguesia incapaz de conduzir autonomamente, sem o amparo forâneo, a “transformação capitalista” e, portanto, de conciliar revolução nacional e revolução democrática, mas que nem por isso (e talvez exatamente por causa disso), jamais deixou de estar no centro de controle do poder econômico, social e político da sociedade brasileira. Essa questão é decisiva, e pode ser considerado o eixo da particularidade brasileira de objetivação não-clássica do capitalismo. Conquanto encetado com a participação fu ndamental do capital monopolista e financeiro (principalmente estrangeiro), não houve no processo de transformação capitalista brasileiro nada parecido com uma ocupação direta do estrangeiro no Estado ou no território nacional, numa situação onde as elites locais fazem o papel de simples marionetes.

Por outro lado, diferentemente de outros exemplos de objetivação não clássica do capitalismo, - como no caso da transformação capitalista da Alemanha pela chamada via prussiana - o ponto de apoio da transformação capitalista brasileira não adveio somente dos estamentos aristocráticos e da burocracia estatal civil e militar internos, mas o condomínio do Bloco Histórico no poder, inclusivo, sempre inclusivo, teve um lugar privilegiado reservado para os interesses das nações capitalistas hegemônicas, especialmente os Estados Unidos, o grande aliado em tempos de guerra fria.

Não devemos jogar a criança junto com a água suja do banho. No tocante ao Bloco Histórico de 1930, temos a obra (o capitalismo tardio dependente e subdesenvolvido) e o processo (o complexo e contraditório movimento de mudanças sociais). Contestar a obra não significa abrir mão de analisar o processo. Trazendo a questão para a emergência do agora, pensar 1930 a partir de 2010, ano de sucessão presidencial e eleições gerais, ao emergir o espectro de um novo populismo, o lulismo, significa tanto abrir mão de preconceitos na interpretação do fenômeno como abdicar de embarcar, desprevenido, sem razão nem crítica, no coro alegre dos contentes.

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