Marina Silva: Événement e Carisma

Jaldes Reis de Meneses

Artigo também postado no portal www.wscom.com.br

Ninguém espera e acontece como milagre. Em política, felizmente (os crédulos diriam “graças a Deus”), existe o conceito extraordinário, mas algo fugidio, do acontecimento (a língua francesa possui a palavra apropriada: Événement). Ou seja, distinto do simples evento, Événement tem o significado da surpresa que ninguém espera e, muitas vezes, tem a força de alterar a série histórica rotineira, enfadonha, de um processo que não se renova. O Événement em letra maiúscula, portanto, sinaliza a mudança de rumos.

Não se trata de uma formulação teórica isenta de conseqüências. Neste sentido, discordo de certa filosofia irracionalista contemporânea – Alain Badiou e Slavoj Zizek – que exageram a potência do Événement e religiosamente acreditam que somente o ato puro, gozoso, inaugural, desprovido de valor ético a priori, pode redimir o homem de sua condição animal e produzir valores. O irracionalismo abre em teoria política a possibilidade de justificação da violência e à crítica dos direitos do homem – no que se deve fazer a crítica severa e discordante. No entanto: mesmo abandonando o irracionalismo, quem há de duvidar da existência da surpresa, do extraordinário, do que não estava previsto?

Todo este longo preâmbulo algo metafísico para afirmar que a votação de Marina Silva nas eleições presidenciais foi um preciso e certeiro Événement – na acepção de um fato político novo. É possível aparecer em futuro próximo uma nova construção política na vida brasileira. Dessa maneira, assim como a assunção de Lula no segundo turno, nas eleições presidenciais de 1989, desbancando o histórico Leonel Brizola, significou um fato novo, também o é a recente consagração de Marina Silva. Em contrafeita à tese da novidade, pode-se argüir que Marina nada mais é que o Ciro Gomes ou a Heloisa de Helena de 2010. É fato desde 1994, há sempre um candidato propondo uma terceira via, mas essa sabedoria convencional deixa de enxergar a riqueza social do que aconteceu agora.

Quase vinte milhões de brasileiros votaram em Marina pela força simbólica da imagem. Poucos de seus eleitores conhecem em profundidade seu pensamento ou as idéias de seu partido. Ninguém discute as peripécias do PV, a aproximação dessa corrente na Europa ao neoliberalismo. Nada disso é problema, sequer é posto no horizonte da decisão do voto. No caso de Marina, funciona a intuição. A imagem é forte, persuasiva, embora não chegue a ser messiânica: a cabocla Marina tem as feições serenas de uma santa e a fala cortante e seca de uma nordestina retirante (lembremo-nos que a ancestralidade de Marina é nordestina, pais cearenses que preferiram as selvas do Acre a São Paulo). Depois de Lula, emerge um novo personagem carismático na vida brasileira.

Carisma, longe de ser uma dádiva dos deuses a seletos escolhidos, trata-se de uma relação social. A relação de carisma se instaura precisamente na falta e preenchendo um vazio. Gramsci afirmava que a relação carismática aparece em política no hiato, na lacuna, entre a desorganização social e os projetos políticos. Na sociedade brasileira atual, depois de oito anos de hegemonia lulista e dezesseis de estabilidade econômica produzida pelo Plano Real, vários personagens estão à deriva, não se reconhecem nas organizações políticas existentes.

Quem representa a classe média urbana? Onde estão os partidos da nova juventude da internet e das redes sociais? Estes segmentos aprenderam a se mexer por movimentos de opinião, avessos a organizações centralizadas. Muitas vezes, desgostosos, abandonaram a fidelidade social a qualquer organização partidária na qual depositaram a fé. Enfastiados da dura, rude, corrupta e realista polarização entre PTxPSDB, são atores à procura de um novo script, nos termos de Erasmo Carlos, de alguma coisa “prá chamar de seu”. Desejo-lhes boa sorte.

Comentários

Caríssimo,
Interessante post. Discordo apenas de dois aspectos, um de pormenor e outro de substância:
1. Zizek usa mais o conceito de "o acto" do que o l'evenement (acontecimento) usado por Badiou.No entanto, ambos são conceitos similares.
2. A minha interpretação deles é bastante diferente. Zizek exemplifica como exemplo de o Acto a recusa de Antigona em deixar sem ritos funerários o corpo do irmão que combateu a sua cidade, afirmando que essa recusa precipita um conjunto de acontecimentos que fazem cair o reino como um castelo de cartas. A potência do acto ou acontecimento em si, parece incomensurável no momento anterior a suceder, mas na verdade ele dá saída a uma situação que já existe em potência. Tebas já estava podre, só que ainda ninguém se tinha apercebido disso.
Isto também quer dizer que uma ruptura temporal, uma cisura ou uma revolução transporta-nos para uma situação que dificilmente poderiamos prever quando vivíamos no antigo regime que é derrubado. Tal como uma revolução ciêntífica, segundo Thomas Kuhn nos faz ver uma paisagem científica , em factos que observávamos todos os dias, radicalmente diferentes daqueles
que observávamos nos tempos de "ciência normal".

Com toda a consideração,
Nuno Ramos de Almeida
Gerhard Boehme disse…
A Economia de Mercado é subversiva numa Sociedade do Privilégio pois propugna a competição, a impessoalidade e a Meritocracia, e dispensa, tanto quanto possível a interveniência de um Estado cheio de vícios.





Só uma verdadeira e bem urdida Sociedade do Privilégio consegue o prodígio de alijar a Economia de Mercado do sistema político-partidário, e consegue nos impor quatro candidatos a desancar o que chamam de “o modelo neoliberal”, cada qual propondo, em diferentes vestimentas, a extensão de novos Privilégios e o crescimento do Estado.

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