Greve nas Universidades e trabalho docente
Jaldes Reis de Meneses
Pela primeira vez desde 1998, as universidades brasileiras se encontram em levante. Acabei de assistir ao programa Jô Soares, no começo da madrugada, e o assunto em pauta era a greve dos docentes das Universidades públicas. Por quê? Não tenho respostas conclusivas, mas o atrevimento de algumas hipóteses.
Pretendo escrever outros artigos, mas gostaria em primeiro lugar de glosar a questão do trabalho intelectual docente. Só há como abordar o tema da (des)valorização do trabalho docente inserido no contexto das transformações do capitalismo contemporâneo e dos sistemas de ciência e tecnologia. Ao tratarmos de uma campanha salarial e de uma greve das universidades federais, em um país como o Brasil, que possui um dos 16 sistemas de produção de ciência do mundo, e o maior da América Latina, mais de 90% nas universidades públicas, é quando aquilatamos a dimensão global do processo no qual estamos inseridos.
Trabalho intelectual-cerebral é a principal forma do trabalho vivo hoje. É difícil, porém, mensurar formalmente o trabalho intelectual, ao menos seguindo a maneira das formas clássicas do capitalismo monopolista do século XX, baseado no fluxo do tempo de produção de mercadorias junto a uma linha de montagem automatizada, com uma divisão de trabalho bem delimitada entre executores e executantes, dirigentes e dirigidos. Pode até parecer aos incautos que o trabalho intelectual seja improdutivo, mas o fato objetivo é precisamente o inverso: o trabalho intelectual extrapola, trata de uma atividade eminentemente cerebral, criativa, afetiva (não pensamos somente na pesquisa, mas também no ensino), produz exatamente a desmedida do valor porque é mais do que ele, e não menos, o que não pode ser mensurado com as técnicas convencionais de medição da produtividade quando estas se baseavam no taylorismo e no fordismo. O que significa, portanto, a valorização do trabalho docente, se ele extrapola, para mais e não para menos, a medida de valor? A política decide a distribuição da des-medida de riqueza, as maneiras de partilha do excedente social. Saliento que estou longe de negar Marx, mas exatamente o contrário: o valor continua a vigorar, inclusive porque ele continua a reger até mesmo a lógica racional das atividades de trabalho que extrapolam a clássica divisão do trabalho do modo de produção capitalista, tanto na esfera da produção como da reprodução.
Várias são as dimensões de análise das vicissitudes do trabalho intelectual, e diversas, as vertentes teóricas, inviáveis de serem descritas no espaço de um texto curto. Como esquema explicativo do caso particular da Universidade, cabe o comentário de que, enfim, temos hoje concretizadas as prédicas do sociólogo Max Weber, no clássico texto A ciência como vocação (1919) – o processo de exaustão da figura do intelectual artesão (que Gramsci chamou de intelectual tradicional) e a assunção plena do trabalho intelectual coletivo, formador das estruturas de classe que Gramsci chamou de orgânicas. Em outras palavras, traduzindo no vocabulário da economia política de Marx: a divisão social de trabalho originária da fábrica (o antigo loci da produção capitalista), em vez de simplesmente se esgotar, expandiu forma e conteúdo, alterando substantivamente a esfera da reprodução social (Estado, família, sistema educacional, etc.). Produção e reprodução se entrelaçaram, ou tendem vertiginosamente ao enlace.
Do meu ponto de vista, as vicissitudes do trabalho intelectual contemporâneo, em lugar de destruir, atualizam – certamente de maneira modificada –, a organização sindical do trabalho. Contudo, esta é uma questão em disputa entre várias percepções e projetos políticos, especialmente entre os que vêem o trabalho docente sob uma perspectiva individualista, solitária, e os que vêem sob uma perspectiva coletiva, solidária; entre os que não detectaram ainda os controles externos (Estado e capital, principalmente) e os que se insurgem contra estes mesmos controles. Enfim, não se trata de uma disputa entre “produtivos” e “improdutivos” – até porque o rigor intelectual pode ser encontrado em ambos os lados –, mas entre os que reconhecem como uma das dimensões inelimináveis do cotidiano universitário as problemáticas atinentes à profissão e ao trabalho e os que, na prática, denegam esta dimensão, muitas vezes se acostando subjetivamente no cultivo de um ideal morto de ciência neutra. O trabalho intelectual-cerebral como trabalho alienado.
Começamos a ter em presença, atualmente, nas universidades públicas – e o debate subterrâneo de adesão da categoria docente à greve demonstrou isso –, um conflito entre o projeto de constituição da categoria como sujeito coletivo de trabalho e uma percepção conformista da Universidade como o loci de um trabalho de tipo artesanal, que existe somente como resíduo e ideologia. O que tudo isso tem a ver com carreira docente? A primeira carreira docente que tivemos na modernidade (passada a grande crise da Universidade na época do iluminismo) foi a da Universidade alemã, hierarquizada e organizada sob as bases de uma divisão artesanal do trabalho (professor catedrático, assistente e auxiliar), que tinha mais a ver com divisão de poder do que trabalho. Com diferenças nacionais importantes, de alguma maneira, a nomenclatura alemã foi exportada para a Universidade francesa e norte-americana e inclusive a brasileira.
No entanto, no Brasil, na prática, subvertemos a hierarquia estamental do trabalho universitário tradicional. Qual é mesmo a diferença real de trabalho nas Universidades federais brasileiras entre o professor auxiliar (começo da carreira) e o associado (ápice)? Difícil perceber. Pode-se argüir, com razão, que o professor-associado trata-se de um doutor, e que a partir da titulação tem acesso à concorrência em pesquisa. Perfeito. Porém, a prerrogativa de acesso aos editais de pesquisa, necessário a partir de certo patamar de conhecimento demonstrado, trata-se de uma atividade de pesquisador, que sem dúvida é um plus, mas não constitui rigorosamente diferença hierárquica em relação aos seus colegas de atividade laboral. A não ser como ideologia de diferenciação.
Na verdade, o trabalho do pesquisador se assemelha mais ao de um técnico do que o de um intelectual clássico (figura histórica hoje rara de cujo ethos talvez tivesse sentido cobrar uma hierarquia de carreira). Para pontuar e concorrer aos editais, o novo técnico tem mais que se inserir em uma agenda de pesquisa internacional, reconhecer um nicho do conhecimento e se integrar nele, do que propriamente cultivar o espírito (se ambos coadunarem, ótimo). Não há demérito algum na atitude salutar de se integrar a uma agenda ou paradigma de pesquisa, ao contrário, pois assim, se podemos definir, nos tornamos mais “coletivos” e menos “artesanais”, mais divisão social (e intelectual) do trabalho do que solidão.
Pela primeira vez desde 1998, as universidades brasileiras se encontram em levante. Acabei de assistir ao programa Jô Soares, no começo da madrugada, e o assunto em pauta era a greve dos docentes das Universidades públicas. Por quê? Não tenho respostas conclusivas, mas o atrevimento de algumas hipóteses.
Pretendo escrever outros artigos, mas gostaria em primeiro lugar de glosar a questão do trabalho intelectual docente. Só há como abordar o tema da (des)valorização do trabalho docente inserido no contexto das transformações do capitalismo contemporâneo e dos sistemas de ciência e tecnologia. Ao tratarmos de uma campanha salarial e de uma greve das universidades federais, em um país como o Brasil, que possui um dos 16 sistemas de produção de ciência do mundo, e o maior da América Latina, mais de 90% nas universidades públicas, é quando aquilatamos a dimensão global do processo no qual estamos inseridos.
Trabalho intelectual-cerebral é a principal forma do trabalho vivo hoje. É difícil, porém, mensurar formalmente o trabalho intelectual, ao menos seguindo a maneira das formas clássicas do capitalismo monopolista do século XX, baseado no fluxo do tempo de produção de mercadorias junto a uma linha de montagem automatizada, com uma divisão de trabalho bem delimitada entre executores e executantes, dirigentes e dirigidos. Pode até parecer aos incautos que o trabalho intelectual seja improdutivo, mas o fato objetivo é precisamente o inverso: o trabalho intelectual extrapola, trata de uma atividade eminentemente cerebral, criativa, afetiva (não pensamos somente na pesquisa, mas também no ensino), produz exatamente a desmedida do valor porque é mais do que ele, e não menos, o que não pode ser mensurado com as técnicas convencionais de medição da produtividade quando estas se baseavam no taylorismo e no fordismo. O que significa, portanto, a valorização do trabalho docente, se ele extrapola, para mais e não para menos, a medida de valor? A política decide a distribuição da des-medida de riqueza, as maneiras de partilha do excedente social. Saliento que estou longe de negar Marx, mas exatamente o contrário: o valor continua a vigorar, inclusive porque ele continua a reger até mesmo a lógica racional das atividades de trabalho que extrapolam a clássica divisão do trabalho do modo de produção capitalista, tanto na esfera da produção como da reprodução.
Várias são as dimensões de análise das vicissitudes do trabalho intelectual, e diversas, as vertentes teóricas, inviáveis de serem descritas no espaço de um texto curto. Como esquema explicativo do caso particular da Universidade, cabe o comentário de que, enfim, temos hoje concretizadas as prédicas do sociólogo Max Weber, no clássico texto A ciência como vocação (1919) – o processo de exaustão da figura do intelectual artesão (que Gramsci chamou de intelectual tradicional) e a assunção plena do trabalho intelectual coletivo, formador das estruturas de classe que Gramsci chamou de orgânicas. Em outras palavras, traduzindo no vocabulário da economia política de Marx: a divisão social de trabalho originária da fábrica (o antigo loci da produção capitalista), em vez de simplesmente se esgotar, expandiu forma e conteúdo, alterando substantivamente a esfera da reprodução social (Estado, família, sistema educacional, etc.). Produção e reprodução se entrelaçaram, ou tendem vertiginosamente ao enlace.
Do meu ponto de vista, as vicissitudes do trabalho intelectual contemporâneo, em lugar de destruir, atualizam – certamente de maneira modificada –, a organização sindical do trabalho. Contudo, esta é uma questão em disputa entre várias percepções e projetos políticos, especialmente entre os que vêem o trabalho docente sob uma perspectiva individualista, solitária, e os que vêem sob uma perspectiva coletiva, solidária; entre os que não detectaram ainda os controles externos (Estado e capital, principalmente) e os que se insurgem contra estes mesmos controles. Enfim, não se trata de uma disputa entre “produtivos” e “improdutivos” – até porque o rigor intelectual pode ser encontrado em ambos os lados –, mas entre os que reconhecem como uma das dimensões inelimináveis do cotidiano universitário as problemáticas atinentes à profissão e ao trabalho e os que, na prática, denegam esta dimensão, muitas vezes se acostando subjetivamente no cultivo de um ideal morto de ciência neutra. O trabalho intelectual-cerebral como trabalho alienado.
Começamos a ter em presença, atualmente, nas universidades públicas – e o debate subterrâneo de adesão da categoria docente à greve demonstrou isso –, um conflito entre o projeto de constituição da categoria como sujeito coletivo de trabalho e uma percepção conformista da Universidade como o loci de um trabalho de tipo artesanal, que existe somente como resíduo e ideologia. O que tudo isso tem a ver com carreira docente? A primeira carreira docente que tivemos na modernidade (passada a grande crise da Universidade na época do iluminismo) foi a da Universidade alemã, hierarquizada e organizada sob as bases de uma divisão artesanal do trabalho (professor catedrático, assistente e auxiliar), que tinha mais a ver com divisão de poder do que trabalho. Com diferenças nacionais importantes, de alguma maneira, a nomenclatura alemã foi exportada para a Universidade francesa e norte-americana e inclusive a brasileira.
No entanto, no Brasil, na prática, subvertemos a hierarquia estamental do trabalho universitário tradicional. Qual é mesmo a diferença real de trabalho nas Universidades federais brasileiras entre o professor auxiliar (começo da carreira) e o associado (ápice)? Difícil perceber. Pode-se argüir, com razão, que o professor-associado trata-se de um doutor, e que a partir da titulação tem acesso à concorrência em pesquisa. Perfeito. Porém, a prerrogativa de acesso aos editais de pesquisa, necessário a partir de certo patamar de conhecimento demonstrado, trata-se de uma atividade de pesquisador, que sem dúvida é um plus, mas não constitui rigorosamente diferença hierárquica em relação aos seus colegas de atividade laboral. A não ser como ideologia de diferenciação.
Na verdade, o trabalho do pesquisador se assemelha mais ao de um técnico do que o de um intelectual clássico (figura histórica hoje rara de cujo ethos talvez tivesse sentido cobrar uma hierarquia de carreira). Para pontuar e concorrer aos editais, o novo técnico tem mais que se inserir em uma agenda de pesquisa internacional, reconhecer um nicho do conhecimento e se integrar nele, do que propriamente cultivar o espírito (se ambos coadunarem, ótimo). Não há demérito algum na atitude salutar de se integrar a uma agenda ou paradigma de pesquisa, ao contrário, pois assim, se podemos definir, nos tornamos mais “coletivos” e menos “artesanais”, mais divisão social (e intelectual) do trabalho do que solidão.
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