Adeus, Carlos Nelson Coutinho

Jaldes Reis de Meneses

Morreu na noite da última quinta-feira (20/09) no Rio de Janeiro um dos principais intelectuais brasileiros, grande interprete do Brasil, Carlos Nelson Coutinho, de um câncer fulminante detectado há poucos meses. Recebo notícias de que muitas estão sendo muitas as homenagens prestadas no mundo acadêmico brasileiro e internacional, a começar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual era professor emérito, mas principalmente de seus colegas de trabalho e admiradores Brasil afora.

Logo que recebi na manhã seguinte de sexta-feira a notícia do falecimento de Carlos Nelson tive dificuldade em escrever as minhas lembranças. A visita algum dia da “indesejada das gentes” (parafraseando o verso de Manuel Bandeira) é inefável, contudo queremos vê-la longe de nós e das pessoas que aprendemos pelo exemplo a admirar e pelas quais nutrimos afeto. Embora difícil, pode-se e deve-se aceitar estoicamente a morte. Por isso realizamos o trabalho de luto. Gilberto Gil, companheiro de geração de Carlos Nelson, em belo e definitivo verso, separou a morte de morrer, o dado simbólico do acontecimento natural. Carlos Nelson morreu e continua vivo. Não penso em transcendência, na passagem demasiado citada e talvez incompreendida de Guimarães Rosa que as pessoas ficam “encantadas” ao alto num firmamento, ao contrário, penso em referir o “encantamento” à materialidade do tesouro social do pensamento vivo. Os cristãos da reforma apregovam, cobertos de razão, a remissão à importância da obra e dos feitos. Os gregos inventaram a história exatamente visando cultuar os feitos dos deuses mortais.

Por tudo, creio que devo escrever um depoimento pessoal. Carlos Nelson, enfim e para mim, foi, antes de tudo, um professor muito generoso, me recebeu de braços abertos no Rio de Janeiro na condição de orientador de minha vontade de escrever uma tese de doutorado sobre Gramsci cujos contornos não estavam claros. Com o tempo, escolhi o tema da revolução passiva, a partir de uma embocadura no conceito de relação de forças do comunista sardo, que percebi ser fundamental, mas que não era devidamente levado em consideração na bibliografia gramsciana. Carlos Nelson me estimulou e passei o ano de 2000 – começos do novo milênio –, de volta a João Pessoa, e após a leitura completa dos “Cadernos do Cárcere”, a redigir uma tese de doutorado auxiliada pela troca de muitos e-mails. Ainda tenho alguns desses e-mails, que não devem ser encarados como estrita correspondência privada, pois as respostas de Carlos Nelson, sempre redigidas com limpidez, além de ter me ajudado a trilhar as veredas da tese, tem serventia teórica, tanto pelo brilhantismo de algumas sacadas, como também pelo fino humor – inglês de sotaque baiano? – de algumas de suas tiradas espontâneas.

Inventei no começo de fazer uma analogia entre o conceito de ondas longas de Ernest Mandel e revolução passiva de Gramsci. Carlos Nelson sabia que a empreitada tinha algo de estapafúrdio, mas longe de desencorajar, aconselhou seguir em frente, afirmando que o processo histórico da social-democracia européia (e por extensão do keynesianismo) tinha tudo a ver com revolução passiva. Com o tempo, abandonei a analogia, mas ela não foi inútil, pois a partir dele cheguei ao estudo mais pormenorizado do conceito de “crise orgânica” de Gramsci – que falta em Mandel em suas brilhantes páginas sobre as ondas longas. Na verdade, o conceito de Mandel, embora se deseje histórico, enreda nas mesmas contradições de Kondratiev – economista russo do começo do século XX, referência heterodoxa na qual ele se baseia ao mesmo tempo em que busca se afastar –, prefigurando nas tais “ondas longas” uma espécie de projeção geométrica dos ciclos curtos do capitalismo.

Para mim, em resumo, porque sei que o tema é cabeludo demais em uma nota memorialista, as “ondas longas”, no fundo, elidiam o papel do acaso e da surpresa na história: menos que uma projeção geométrica de um ciclo aritmético, o capitalismo precisou enterrar 40 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial para em seguida viver os tais dos “trinta anos gloriosos”. Longe de existir ondas, o há somente abertura histórica. Contudo, passei a compreender e admirar o fundo oculto da empreitada de Mandel. Na verdade, o velho dirigente trotskista estava revisando o “programa de transição” de Trotsky, especialmente na assertiva de que as “forças produtivas pararam de crescer”. Não havia como explicar as transformações do capitalismo tardio (na acepção de avançado, ultramoderno ou mesmo pós-moderno), qual seja, as revoluções tecnológicas e as sociedades de consumo de massas senão pelo recurso à ampliação das notações de Trotsky. As ondas longas, portanto, era um caminho de refazer para frente o caminho de Trotsky, ao mesmo tempo em que discretamente o revisava por dentro dos escaninhos de uma ortodoxia. Carlos Nelson, às vezes cético ou mesmo prevendo o desfecho, gostava dessas especulações. Mais que o resultado, vale a viagem. Tenho a dizer, enfim, que foi o tempo inteiro um orientador de espírito livre, um interlocutor que jamais podava a especulação.

Teria mais coisas a dizer. Outros dirão. Entrei em contacto com Carlos Nelson pela última vez em maio, dizendo que havia começado escrevendo uma resenha a propósito de seu último livro – “De Rousseau a Gramsci” (Boitempo, 2011). O texto resultou em um escrito bem mais longo, tendo como objeto o que achava ser o âmago de seu projeto em filosofia política – a união dos conceitos de hegemonia e contrato. Carlos Nelson se interessou e disse que em breve entraria em contacto expondo as suas opiniões. Não escreveu, nem pedi retorno, ciente da doença. Hoje recebo a noticia do falecimento.

Gostaria de encerrar este depoimento notando que Carlos Nelson tem duas origens intelectuais indeléveis. A floração da geração de intelectuais baianos, de Caetano Veloso e Capinan, que participaram de um momento ímpar da renovação das artes e da política em Salvador, e principalmente dos intelectuais do PCB, que aproveitam as lufadas de ar fresco e arejaram o velho e extinto “partidão” depois da famosa e maltratada “Declaração de Março de 1958”, que pela primeira vez, na esquerda comunista brasileira, buscou de fato conjugar socialismo e democracia. Carlos Nelson não morre, continua vivo na ação dos que têm como projeto combinar socialismo e democracia, um binômio ainda irrealizado no mundo, prenhe, por exemplo, nas promessas de protesto dos jovens do movimento Occupy Wall Street. Faço remissão final a um movimento de rua porque Carlos Nelson nunca foi um reles institucionalista – a sua mais famosa tese, a democracia como valor universal, remetia mais ao vir a ser do que às cadeias do positivo existente. O grande mestre naturalmente morreu. Quanto à morte, a indesejada das gentes, simbólica e socialmente, o trabalho de luto é assunto nosso.

Comentários

Revistacidadesol disse…
Que bobagem, Jaldes, socialismo é democracia, é expansão de direitos.

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