Kant e Reginaldo Rossi

Jaldes Meneses

Reginaldo Rossi é um homem de sorte: teve a ventura de morrer no século XXI, no último mês deste belo ano de 2013. Tivesse o infortúnio de morrer naquele acidente de automóvel ocorrido em 1995, por coincidência que felizmente não houve, teria ido embora da mesma maneira trágica de Chico Science – este indo numa madrugada do pré-carnaval de Olinda. Teria sido certamente enterrado numa vala comum, acompanhado da gente popular de Recife e do Nordeste, sem dúvida, mas jamais teria mais de trinta segundos de notícia em rede nacional. Muito distante, portanto, da comoção bonita e sincera que se vê hoje.
Há verdade em todos os necrológios que li a respeito de Reginaldo Rossi. Mas também há algo de falso e dirigido, no sentido intentam-se a uma ascensão de novos ritmos, gostos e caminhos na música popular, no mesmo instante em que o bloco histórico da MPB definidamente se exauriu e, por outro lado, a música no Brasil continua sendo este inesgotável manancial de talento e sociabilidade.
Reginaldo morreu no mesmo momento em que o grande acontecimento da música popular, a fonte de todos os debates, hoje nas redes sociais, é o The Voice Brasil. Mais nunca a música popular tinha sido objeto de torcida. Era somente de adesão de tribo. Cada um na sua.
Em resumo, quero dizer que a morte de Reginaldo se deu precisamente em um momento simultâneo de debate e abertura em relação ao gosto popular. A indústria cultural, rigorosamente, não sabe o que se quer escutar. Por isso, abre-se a todos os gêneros, de maneira que a zebra Lucy Alves, sua sanfona e frevo performáticos, quem diria?, abre caminho em meio à pasteurização dos cantores de soul music, todos cantantes de registro vocal indo às nuvens, todos antípodas de João Gilberto, ao inverso de Lucy, de beleza morena e registro vocal médio e terno, quase um acalanto, mesmo quando toca forró pé-de-serra.
Sempre brinquei com certos ouvidos de classe média universitária, metidos a ter bom gosto, quando afirmo provocativamente: qual é mesmo a diferença entre Reginaldo Rossi e Marisa Monte quando, ambos, bebem na fonte da jovem guarda? As pessoas ficam chocadas. Tolas pessoas. Realmente, a diferença musical entre Reginaldo e Marisa, é que o “Rei de Recife” põe ênfase nos metais e nos teclados, enquanto Marisa (de quem gosto) inventou de valorizar as cordas nos arranjos de suas canções românticas.
No entanto, o abismo social é enorme. Reginaldo é mais visceral, direto, mais cru, mais “povão”, mais “bolsa-família”, mais “trabalhador urbano”, ao passo que a bela imagem clean de Marisa é mais “classe média”, mais “menina romântica” tornada velha. Gosto dessas imagens todas e torço para que um dia, à maneira do poeta Antonio Cicero, a zona norte invada a zona sul.
O momento mais emocionante do velório de Reginaldo Rossi deu-se quando um emocionado Naná Vasconcelos lamentou a irremediável perda. Para mim, simbolicamente deu-se um encontro de futuro.
Quem sabe não se geste daí uma nova potência musical? Sempre digo a meus alunos que o futuro da música brasileira não se encontra no morro ou no sertão, mas no Japão. O Japão é o teste da universalidade de gosto da música brasileira, da universalidade expressiva das finalidades sem fim de Kant. Uma das cantoras brasileiras que primeiro entendeu isso no século passado foi Nara Leão – a cantora mais importante do Brasil no século XX, o que não quer dizer que tenha sido a melhor – que cantou bossa nova, samba do morro, canção de protesto, tropicalismo e Roberto Carlos, fugiu do gueto e alçou o universal.

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