O destino bate à porta
Jaldes Meneses
No
dia em que a presidente eleita Dilma Rousseff tomou posse no primeiro mandato
(01/01/11), sucedendo Lula na condição de ungida do Rei consagrada pela vontade popular, escrevi para a revista
Nordeste um artigo de previsão chamado “A transição suave”, no qual sugeria a
possibilidade de haver dois destinos de Estado à nova presidente. Parafraseando
Maquiavel, se a Deusa da Fortuna - depois do sofrimento da tortura na ditadura
- não faltou ao encontro com Dilma, a verdadeira prova dos nove seria o desafio
de virtu na direção de um Estado.
Até
brinquei, o destino de Dilma seria dobrar a aposta do Lulismo (André Singer
exagerava em otimismo, prevendo um novo “alinhamento político” que pudesse
resultar num New Deal brasileiro deslocado no tempo e no espaço) ou se
transformar numa espécie, certamente mais simpática e charmosa, de “General
Dutra de saias”. Fui o primeiro a prever, em janeiro do ano passado, que 2015
seriam um daqueles anos que nunca terminam. Não quero passar por ter previsto o
destino de Dilma, até porque, em vez de um determinismo, apontei uma
encruzilhada.
Nunca
foi fácil. A nova presidente recebia a difícil missão política de substituir um
presidente de dois mandatos que chegou a alcançar índices de 80% de
popularidade. Nenhum presidente brasileiro na história republicana chegou a
tanto. Mas popularidade é espuma, embora seja fundamental, pode-se ter hoje,
perder amanhã e recuperar depois de amanhã.
O
mais importante é combinar as inevitáveis curvas de popularidade com a condição
de última instância de Estado, ou seja, a condição de a última palavra na crise
- aquilo que o senso comum chama de “estadista”. FHC conservou durante todo o
mandato a condição de última instância do Estado, mas, passada a magia do Plano
Real, transformou-se num presidente impopular; Geisel exerceu o poder
prussiano, bancou o General Figueiredo contra a linha dura, mas é tarefa menos
difícil ser empoderado numa ditadura.
Lula
chegou à presidência da república já na condição de mito histórico em vida,
líder das greves do ABC e fundador de um partido ascendente. Mesmo assim,
tratava-se, digamos, de um mito da sociedade civil sob o qual pesava a sombra
desconfiada do fracasso na direção do Estado. Não foi à toa que no governo de
Lula surgiu a expressão, antes inexistente, do lulismo. Há quem não goste da
expressão, contudo, mais além de juízos de valor, a personalização nela
implícita significa poder político, no caso, tanto projetado para fora - a
sociedade -, como para dentro - o aparelho de Estado.
Sei
que o leitor deve achar nebulosa a minha conversa de “última palavra” ou
“última instância do Estado”. Preciso me explicar, tanto histórica como
conceitualmente. Na crise gerada pelo processo de revolução argelina de 1958-1962,
durante a Quarta República (1946-1958), quando os militares se aquartelaram
contra o processo de descolonização, a burguesia francesa olhou para um lado e
outro, não viu autoridade em ninguém, e foi buscar em casa o General de Gaulle,
que exigiu, para tomar posse, alterar as clausulas de emergência do Estado
francês. Só quem podia fazer isso naquele momento era o General de Gaulle e
mais ninguém. Essa condição, que Lula e FHC tiveram, Dilma vem rapidamente
perdendo na voragem da crise.
Não
se trata de ser autoritário ou ditador, ao contrário, mas de perceber que o Estado não é
simplesmente um aparelho burocrático. Nem o principal desafio de um presidente
no regime presidencialista é puramente de “gestão”, mas daquele tipo de "coesão"
que somente a direção política (esse misto gramsciano de força e consenso) possibilita.
Afinal, como já disse Jacob Burckhardt, em refinado estudo clássico sobre o Renascimento italiano, “o Estado é uma obra de arte”.
Para
continuar nas analogias históricas, começaram a pipocar na internet comparações
entre o difícil momento vivido por Dilma e o governo Dutra. Sem dúvida, na aparência, há muito de Dutra em Dilma, mas a analogia pode estar errada. O momento está mais
para “República do Galeão”, a rede de investigação paralela montada na
aeronáutica para investigar o atentado da Rua Tonelero em 1954, onde morreu o
Major Vaz e Lacerda ferido (há dúvidas historiográficas a respeito até hoje), cujo
desenlace resultou no suicídio de Vargas. A biografia de Vargas, esplendidamente
escrita por Lira Neto, conta-nos que foi flagrado em determinada madrugada,
saindo clandestino da sala de investigações do Galeão, ninguém menos que o
candidato derrotado a presidente, o Brigadeiro Eduardo Gomes. O candidato
derrotado tinha ido lá se reunir à socapa com alguns ministros do presidente, que dormia o sono dos justos no Palácio do Catete. Demiurgo do Brasil moderno,
Vargas já não dirigia os cordéis do Estado.
Deveria
encerrar o artigo com uma chave-de-ouro, como nos tempos do soneto petrarquino Contudo, teimo em um “pós-escrito” de enredo banal. Que pensar de um governo cujo Ministro das Minas e Energia, junto com o
principal partido da “aliança”, o PMDB, articula no Senado uma proposta de
alteração no modelo do Pré-Sal, enquanto senadores do PT e outros partidos se esborracham na
manutenção? Pode até haver “gestão”, mas desapareceu a direção política do Estado.
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